Complemento aos artigos:
Robert C. Hinckley's oil painting " The First Operation Under Ether" (1894) |
Existe uma
medicina baseada em evidências (MBE) que tem seu valor, mas é imperativo que
ela não seja soberana à medicina baseada no indivíduo (MBI). Cada pessoa é
única e pode estar fora de uma distribuição de normalidade populacional.
Converso sempre com um amigo neurologista sobre aqueles pacientes que
constituem os 5% que sobrevivem às doenças graves. Muitas vezes, estes 5% não
são estudados com a profundidade que mereceriam, talvez justamente por
constituir uma minoria. Grosso modo as terapias são idealizadas em modelos
protocolares, fato que eventualmente pode “negligenciar” particularidades
individuais (veja: http://saudeconsciencia.blogspot.com/2011/09/saude-x-doenca-geracao-z-tdah.html).
Exemplo disso é a reportagem da Folha SP de 18/10/11, em que médica de Harvard
e consultora do periódico New England Journal of Medicine (NEJM) alerta para o
uso excessivo de medicações psiquiátricas em crianças.
Na verdade o
tema é de primordial importância e retorna quase que diariamente às colunas dos
jornais. Chama atenção outra reportagem da Folha de SP de 10/10/11, em que o
articulista explora a idéia de que procedimentos sem necessidade também ameaçam
a saúde da população. Na mesma reportagem, Rosemary Gibson, médica especialista
em políticas e economia da saúde, afirma a seguinte pérola: “Mais cuidado não significa
melhor cuidado” e aponta procedimentos e exames em excesso como questões a serem
repensadas pela própria comunidade médica (veja mais em: http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/988245-tratamento-medico-em-excesso-custa-quase-us-7-bilhoes.shtml).
Cabe aqui
lembrar as palavras de Rui Barbosa na Câmara dos Deputados, em 1903, época em
que se deu a Revolta da Vacina, em resposta às idéias de Osvaldo Cruz (http://www.riodejaneiroaqui.com/portugues/rui-barbosa-2.html):
“Assim como o direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência,
assim lhe veda transpor-nos a epiderme. Até aqui, até a pele que nos reveste,
pode chegar a ação do Estado. Mas introduzir-me nas veias, em nome da higiene
pública, as drogas da sua medicina, isso não pode, sem se abalançar ao que os
mais antigos despotismos não ousaram”.
Protocolos,
métodos, pacotes empresariais e esquemas terapêuticos são recursos que vêm em
auxílio de minimizar gastos das instituições. Entretanto, como matéria
biomédica, a medicina não deve perder de vista as necessidades dos pacientes,
além de zelar para que sua prática não se baseie no medo da doença e da morte,
mas na promoção e preservação da saúde e da vida. Recentemente vêm em auxílio
desta disparidade, especialidades como os cuidados paliativos em que o
intervencionismo excessivo das unidades de terapias intensivas (UTI) é questionado
em favor de uma discussão saudável sobre o momento da morte e a dificuldade em
sua aceitação. Apego, medo, culpa e hábitos culturais arraigados são algumas
das questões que respondem pela dificuldade em aceitar fatos consumados e
insistir em situações insolúveis. Aprender sobre o perdão, discutir os medos e
a insegurança relativos à imponderabilidade do viver é matéria médica que cada
vez mais estará presente no curso de formação. A medicina antroposófica baseada
nos pensamentos do filósofo Rudolf Steiner, parece ter dado um grande passo
nesse sentido. Nas palavras de Steiner:
"É preciso erradicar da alma todo medo e terror do que o
futuro possa trazer ao homem. É preciso adquirir serenidade em todos os
sentimentos e sensações a respeito do futuro. É preciso que olhemos para frente
com absoluta equanimidade para com tudo que possa vir. Precisamos pensar
somente que tudo o que vier nos será dado por uma direção mundial plena de
sabedoria. Isto é parte do que temos de aprender nesta era, a saber: viver em
pura confiança. Sem qualquer segurança na existência; confiança na ajuda sempre
presente do mundo espiritual. Em verdade, nada terá valor se a coragem nos
faltar. Disciplinemos nossa vontade e busquemos o despertar interior todas as
manhãs e todas as noites." (Rudolf Steiner - Bremen 27.11.1910)
Abaixo a terceira
parte do estudo sobre prevenção quaternária na atenção primária à saúde em que pesquisadores
da Universidade Federal de Santa Catarina (Norman e Tesser) nos presenteiam com
uma pérola de saúde para reflexão. Fatores de risco, os perigos da estatística
como prova, sugestões para uma vida saudável são alguns dos temas por eles abordados
nesta parte final do estudo. Em caso de interesse, para entrar em contato com
os autores: charlestesser@ccs.ufsc.br. Artigo completo acessível em:
http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2009000900015
Medicalização de fatores de risco
Do ponto de
vista histórico a prevenção migrou da Saúde Pública para a clínica das doenças.
Assim, a identificação de fatores de risco como parte da prevenção inaugurou
uma nova era na Saúde Pública e na Medicina. Fatores de risco, como a
hipertensão arterial, são agora considerados como "doenças".
O termo "fator
de risco" diz respeito a um aspecto do comportamento pessoal, a uma
exposição ambiental ou a uma característica pessoal, biológica ou social em
relação à qual existe evidência epidemiológica de que está associada à
determinada condição relacionada com a saúde, condição essa que se considera
importante prevenir. Numa linguagem mais simples, usa-se o termo "fator de
risco" para descrever características (fatores) que estão associadas
positivamente ao risco de desenvolvimento de doença, mas não são necessariamente
fatores causais. Um fator causal é aquele que ficou estabelecido com um
razoável consenso científico como agente causal de uma enfermidade.
Este tipo de
medida (estabelecimento de fatores de risco) baseia-se em cálculos de
probabilidades e a evidência é obtida pelos estudos com grupos de indivíduos,
eventualmente do somatório de vários grupos de indivíduos (metanálises). Na sua
prática clínica, cada médico acaba por fazer uma extrapolação da evidência
obtida com esses grupos de indivíduos para o seu paciente individual, com as
suas próprias especificidades. Esta extrapolação não é linear, muito menos
consensual e necessita de elevada perícia e arte médica, mas pretende,
especialmente, aplicar o princípio da beneficência: agir no melhor interesse do
paciente.
O fator de
risco não é necessário nem suficiente para que se apresente a enfermidade. O
fator de risco é simplesmente algo que se associa estatisticamente à doença, e
cuja evitação diminui a freqüência da doença, no entanto não a exclui. Este conceito
é muito diferente da idéia predominante no imaginário coletivo da população - e
inclusive dos profissionais - que associa fator de risco à causa necessária e
suficiente de doença. Em geral, os profissionais identificam erroneamente os
fatores de risco como agentes etiológicos de doença. Por isso, supõe-se que a
evitação do fator de risco elimina a possibilidade da doença e se aceita que a
presença dos fatores de risco levará ao desenvolvimento futuro da doença. A
realidade se opõe tenazmente a estas assertivas, todavia o leigo e o
profissional se apegam a uma interpretação que atribui causalidade ao fator de
risco.
A simples
presença ou ausência dos fatores de risco, mesmo somados (o que multiplica o
risco) não assegura nem exclui o episódio. De fato, é muito chamativo o escasso
valor discriminante dos fatores de risco, de modo que sua simples presença não
permite predição válida acerca do futuro do indivíduo concreto considerado. Tal
dificuldade em transladar os resultados de grupos e populações para os
indivíduos foi assinalada por Feinstein como uma "tragédia
clínico-epidemiológica".
O
mal-entendido se baseia na imprecisão provocada pela situação do conceito de
fator de risco, na encruzilhada entre a causalidade (teoria), a estatística (técnica)
e a medicina (ação de cuidado). A ambigüidade do conceito de fator de risco não
é inocente e se baseia no poderoso efeito associativo sobre a mente humana da
concatenação de episódios. Com tal bagagem de erros e imprecisão, o fator de
risco se converte em carro-chefe de uma atividade sanitária que vai da saúde
pública ao tratamento do paciente, não sem grande dose de ideologia
preventivista e linguagem moralizante, que se ocultam sob o manto da
estatística, em benefício das agendas farmacológicas e comerciais que
"combatem" fatores de risco. A alquimia dos números deslumbra os
pacientes e a sociedade, e prefere-se a segurança de uma resposta errônea
envernizada de estatística à incerteza da ignorância.
Uma vez que
os fatores de risco têm pouco poder preditivo, o prudente é empreender
programas que interfiram nas condições básicas de toda a população, que não
sejam centrados nos fatores de risco de alguns pacientes, por muito "de
risco" que sejam. A medicalização excessiva dos fatores de risco tem
levado a uma verdadeira transformação cultural nas populações, de modo que
hoje, segundo Gérvas & Pérez-Fernández, encontramos na população pessoas
sãs (por sê-lo e, sobretudo, por ausência de contato com o sistema de saúde),
sãs preocupadas (com os fatores de risco e com a probabilidade de estarem
enfermas), sãs estigmatizadas (marcados com algum fator de risco, tipo
hipertensão, que lhes introduz no circuito dos cuidados médico-sanitários), e
enfermas, reais ou imaginárias (por transformação de fatores de risco em
pseudodoenças). Transformamos os sãos em sãos preocupados e, depois, em sãos
estigmatizados e em pseudo-enfermos, com o que os deixamos indefesos ante os
danos desnecessários, diários e extraordinários, previsíveis e imprevisíveis.
Esse processo demanda e reitera a necessidade de prevenção quaternária.
Arte e ciência da prevenção
quaternária
Talvez uma
das formas mais importantes de se evitar a medicalização excessiva das pessoas
e praticar a prevenção quaternária é aliar três ferramentas importantes para o
cuidado clínico: abordagem centrada na pessoa, medicina baseada em evidências e
centramento do cuidado na atenção primária à saúde, com longitudinalidade. A
primeira ferramenta diz respeito ao fato de que existe um sujeito que vive o
drama da existência, com seu saber próprio e suas incertezas, medos, angústias,
uma bagagem cultural marcada pela vida. Para realizar sua abordagem, deve-se
colocar entre parênteses a idéia de diagnosticar doenças e colocar a ciência a
serviço do ser humano, como apenas uma ferramenta que poderá ser utilizada ou
não. O paciente geralmente tem uma agenda a respeito do assunto para o qual
veio consultar o médico, um modelo explanatório sobre como sofre, sua causa e
os medos com respeito à sua saúde que agora está abalada. Portanto, mais do que
fechar diagnósticos, há de se ouvir as queixas e refletir conjuntamente sobre
as possibilidades diagnósticas, terapêuticas e prognósticas. A construção de um
plano terapêutico deve ser compartilhada a fim que se possa caminhar junto com
o paciente no processo do cuidar.
A segunda
ferramenta é a medicina baseada em evidências, a utilização de conhecimentos da
biomedicina que tenham o melhor grau de comprovação de sua eficácia pela
ciência, aliados ao contexto e anseios do paciente. Ou seja, o consciencioso
uso da melhor evidência atual para tomar uma decisão sobre o cuidado de um
paciente individual. Pode-se classificar a evidência cientifica em dois tipos: Disease
Oriented Evidence - DOE e Pacient Oriented Evidence that Matters -
POEM. Os estudos do tipo DOE (evidência orientada à doença) versam sobre
desfechos intermediários, como controle de arritmias, redução do colesterol,
controle da pressão etc. Despertam mais atenção da mídia e das pessoas, têm
raiz numa tendência unicausal e se correlacionam bem com a visão leiga de que
"isso é bom para aquilo" - "tome chá disso que é bom
para abaixar o colesterol". Esse tipo de pensamento também ocorre na
ciência: no exemplo da terapia de reposição hormonal (TRH) para mulheres
menopáusicas, cujos estudos preliminares demonstravam que o uso de estrogênio e
progestágeno reduzia o colesterol total e aumentava o colesterol-HDL
(colesterol bom), logo se deduziu que a TRH era boa para o coração.
Porém, o que
mais interessa é saber se a intervenção trouxe real benefício ao paciente, a
saber: se aliviou o sofrimento, reduziu a morbidade e a mortalidade e foi menos
custosa para o paciente. Esta é a evidência POEM (evidência orientada ao
paciente e a que tem importância). Depois que se realizou um ensaio clínico de
alta qualidade pode-se verificar que as mulheres que usavam hormônio, apesar de
terem um perfil lipídico melhor, morriam mais. Não interessa somente saber que
o colesterol melhorou, mas sim se as pessoas estavam vivendo mais e melhor. A
promessa da TRH era que, ao se reduzir a perda de massa óssea, diminuir-se-iam
os riscos de fratura de colo de fêmur nas senhoras idosas no futuro e ainda se
teria um plus de proteger o coração. As mulheres não estavam sofrendo no
presente e, sim, tratava-se de medidas preventivas que, uma vez prescritas, só
muito tempo depois seriam revertidas.
A terceira
ferramenta é o fortalecimento da atenção primária à saúde e da
longitudinalidade nela, com o exercício do conceito de watchful waiting
("observação assistida"), ou demora permitida, particularmente
importante para os médicos de família e comunidade e para a Estratégia Saúde da
Família. Nesta última, o mecanismo de adscrição territorial dos usuários às
equipes de saúde da família induz e supõe a longitudinalidade. Starfield estima
que 40% dos pacientes que trazem um novo problema ao médico de família melhoram
sem que seja estabelecido um diagnóstico específico. A estratégia usada pelos
médicos generalistas ou de família é monitorar os indivíduos que apresentam
sintomas e sinais inespecíficos por várias semanas. Como o quadro sintomático
de uma parte deles, na sua evolução, torna-se mais específico, a hipótese sobre
o diagnóstico pode emergir. Durante esse período de observação assistida (ou
demora permitida), a probabilidade pré-teste de que o problema seja uma doença
passível de definição diagnóstica ou de um teste diagnóstico aumenta. Logo, a
prevalência da doença no grupo a ser investigado cresce e/ dessa forma os
riscos de falso-positivo e falso-negativo do teste são reduzidos. Assim, a
chamada "tintura do tempo" desempenha um papel importante em melhorar
os valores preditivos positivos dos testes diagnósticos.
Cabe, então,
aos profissionais de saúde aplicar o que diz Gérvas & Pérez-Fernández (p.
68) "A chave da prevenção quaternária é não iniciar a cascata de
exames, não classificar o paciente, não abusar do poder de definir o que é
enfermidade, fator de risco e saúde. Há que se resistir tanto à pressão da
corporação farmacêutica, tecnológica e profissional como também dos pacientes.
Há que se desenvolver e estruturar uma ética negativa, baseada no contrato
social implícito que exige do médico o comprimento de sua obrigação, mesmo que
haja uma demanda insaciável para iniciar a cascata diagnóstica e preventiva
desnecessária".
O
desenvolvimento e o ensino em larga escala da prevenção quaternária podem e
devem se tornar um verdadeiro front estratégico da educação permanente
no SUS e na formação dos profissionais de saúde, para que práticas de
excelência em atenção primária à saúde possam ser desenvolvidas e consolidadas
na Estratégia Saúde Família, que diminuam a medicalização e a iatrogenia do
cuidado, ainda relativamente pouco percebidas no Brasil.
Olá amigo,
ResponderExcluirMuito bom!!! Te agradeço por esse artigo.
O médico tem que saber que dada sua autoridde no imaginário das pessoas, também lhe cabe a responsabilidade do que possa provocar no seu contato com aquele que o procura num estado de entrega, delicado,inseguro...o que causa um diagnóstico ou um prognóstico. Aliás quanto a prognósticos creio que seja de fundamental importância o cultivo da humildade, do não saber. Afinal o médico é quando muito, um cientista e, como tal, investigador e não oráculo. Na maioria das vezes o prognóstico, por exemplo, do "não tem cura" apenas significa que não se sabe como curar. Por isso vemos tantos casos supostamente incuráveis que se curam e outros onde o paciente acaba se enfermando mais e até morrendo para cumprir "obedecer" ou cumprir a profecia do médico. É muito bom que possamos refletir sobre todos esses aspectos que deixam de lado o contato com o indivíduo que sofre quando o tornam um número na estatística. Realmente obrigada pelo seu artigo... Linda maneira de celebrar mais que o dia do médico, o humano que você é.
Beijãooo,
Alice
Olá caro Dr.Ricardo.Pensamentos e atitudes desse naipe engrandecem os médicos que assim atuam, e a medicina.Que as forças espirituais continuem te iluminando cada vez mais,e que ensinamentos desse nível floreçam cada vez mais, por sementes tão bem escolhidas , semeadas e cultivadas.parabéns pelo SEU dia, querido MÉDICO, com letras maiúsculas!
ResponderExcluirSer médico para mim siginifica amar ao próximo como a ti mesmo.
ResponderExcluirnão é a toa que o sr é meu anjo da guarda.
Parabéns.