terça-feira, 18 de outubro de 2011

PREVENINDO O PACIENTE DO "MÉDICO" - PARTE III


Complemento aos artigos:

Robert C. Hinckley's oil painting " The First Operation Under Ether" (1894)
         Existe uma medicina baseada em evidências (MBE) que tem seu valor, mas é imperativo que ela não seja soberana à medicina baseada no indivíduo (MBI). Cada pessoa é única e pode estar fora de uma distribuição de normalidade populacional. Converso sempre com um amigo neurologista sobre aqueles pacientes que constituem os 5% que sobrevivem às doenças graves. Muitas vezes, estes 5% não são estudados com a profundidade que mereceriam, talvez justamente por constituir uma minoria. Grosso modo as terapias são idealizadas em modelos protocolares, fato que eventualmente pode “negligenciar” particularidades individuais (veja: http://saudeconsciencia.blogspot.com/2011/09/saude-x-doenca-geracao-z-tdah.html). Exemplo disso é a reportagem da Folha SP de 18/10/11, em que médica de Harvard e consultora do periódico New England Journal of Medicine (NEJM) alerta para o uso excessivo de medicações psiquiátricas em crianças.

Na verdade o tema é de primordial importância e retorna quase que diariamente às colunas dos jornais. Chama atenção outra reportagem da Folha de SP de 10/10/11, em que o articulista explora a idéia de que procedimentos sem necessidade também ameaçam a saúde da população. Na mesma reportagem, Rosemary Gibson, médica especialista em políticas e economia da saúde, afirma a seguinte pérola: “Mais cuidado não significa melhor cuidado” e aponta procedimentos e exames em excesso como questões a serem repensadas pela própria comunidade médica (veja mais em: http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/988245-tratamento-medico-em-excesso-custa-quase-us-7-bilhoes.shtml).

Cabe aqui lembrar as palavras de Rui Barbosa na Câmara dos Deputados, em 1903, época em que se deu a Revolta da Vacina, em resposta às idéias de Osvaldo Cruz (http://www.riodejaneiroaqui.com/portugues/rui-barbosa-2.html):

“Assim como o direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme. Até aqui, até a pele que nos reveste, pode chegar a ação do Estado. Mas introduzir-me nas veias, em nome da higiene pública, as drogas da sua medicina, isso não pode, sem se abalançar ao que os mais antigos despotismos não ousaram”.

Protocolos, métodos, pacotes empresariais e esquemas terapêuticos são recursos que vêm em auxílio de minimizar gastos das instituições. Entretanto, como matéria biomédica, a medicina não deve perder de vista as necessidades dos pacientes, além de zelar para que sua prática não se baseie no medo da doença e da morte, mas na promoção e preservação da saúde e da vida. Recentemente vêm em auxílio desta disparidade, especialidades como os cuidados paliativos em que o intervencionismo excessivo das unidades de terapias intensivas (UTI) é questionado em favor de uma discussão saudável sobre o momento da morte e a dificuldade em sua aceitação. Apego, medo, culpa e hábitos culturais arraigados são algumas das questões que respondem pela dificuldade em aceitar fatos consumados e insistir em situações insolúveis. Aprender sobre o perdão, discutir os medos e a insegurança relativos à imponderabilidade do viver é matéria médica que cada vez mais estará presente no curso de formação. A medicina antroposófica baseada nos pensamentos do filósofo Rudolf Steiner, parece ter dado um grande passo nesse sentido. Nas palavras de Steiner:

"É preciso erradicar da alma todo medo e terror do que o futuro possa trazer ao homem. É preciso adquirir serenidade em todos os sentimentos e sensações a respeito do futuro. É preciso que olhemos para frente com absoluta equanimidade para com tudo que possa vir. Precisamos pensar somente que tudo o que vier nos será dado por uma direção mundial plena de sabedoria. Isto é parte do que temos de aprender nesta era, a saber: viver em pura confiança. Sem qualquer segurança na existência; confiança na ajuda sempre presente do mundo espiritual. Em verdade, nada terá valor se a coragem nos faltar. Disciplinemos nossa vontade e busquemos o despertar interior todas as manhãs e todas as noites." (Rudolf Steiner - Bremen 27.11.1910)

Abaixo a terceira parte do estudo sobre prevenção quaternária na atenção primária à saúde em que pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (Norman e Tesser) nos presenteiam com uma pérola de saúde para reflexão. Fatores de risco, os perigos da estatística como prova, sugestões para uma vida saudável são alguns dos temas por eles abordados nesta parte final do estudo. Em caso de interesse, para entrar em contato com os autores: charlestesser@ccs.ufsc.br. Artigo completo acessível em: http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2009000900015

Medicalização de fatores de risco
Do ponto de vista histórico a prevenção migrou da Saúde Pública para a clínica das doenças. Assim, a identificação de fatores de risco como parte da prevenção inaugurou uma nova era na Saúde Pública e na Medicina. Fatores de risco, como a hipertensão arterial, são agora considerados como "doenças".
O termo "fator de risco" diz respeito a um aspecto do comportamento pessoal, a uma exposição ambiental ou a uma característica pessoal, biológica ou social em relação à qual existe evidência epidemiológica de que está associada à determinada condição relacionada com a saúde, condição essa que se considera importante prevenir. Numa linguagem mais simples, usa-se o termo "fator de risco" para descrever características (fatores) que estão associadas positivamente ao risco de desenvolvimento de doença, mas não são necessariamente fatores causais. Um fator causal é aquele que ficou estabelecido com um razoável consenso científico como agente causal de uma enfermidade.
Este tipo de medida (estabelecimento de fatores de risco) baseia-se em cálculos de probabilidades e a evidência é obtida pelos estudos com grupos de indivíduos, eventualmente do somatório de vários grupos de indivíduos (metanálises). Na sua prática clínica, cada médico acaba por fazer uma extrapolação da evidência obtida com esses grupos de indivíduos para o seu paciente individual, com as suas próprias especificidades. Esta extrapolação não é linear, muito menos consensual e necessita de elevada perícia e arte médica, mas pretende, especialmente, aplicar o princípio da beneficência: agir no melhor interesse do paciente.
O fator de risco não é necessário nem suficiente para que se apresente a enfermidade. O fator de risco é simplesmente algo que se associa estatisticamente à doença, e cuja evitação diminui a freqüência da doença, no entanto não a exclui. Este conceito é muito diferente da idéia predominante no imaginário coletivo da população - e inclusive dos profissionais - que associa fator de risco à causa necessária e suficiente de doença. Em geral, os profissionais identificam erroneamente os fatores de risco como agentes etiológicos de doença. Por isso, supõe-se que a evitação do fator de risco elimina a possibilidade da doença e se aceita que a presença dos fatores de risco levará ao desenvolvimento futuro da doença. A realidade se opõe tenazmente a estas assertivas, todavia o leigo e o profissional se apegam a uma interpretação que atribui causalidade ao fator de risco.
A simples presença ou ausência dos fatores de risco, mesmo somados (o que multiplica o risco) não assegura nem exclui o episódio. De fato, é muito chamativo o escasso valor discriminante dos fatores de risco, de modo que sua simples presença não permite predição válida acerca do futuro do indivíduo concreto considerado. Tal dificuldade em transladar os resultados de grupos e populações para os indivíduos foi assinalada por Feinstein como uma "tragédia clínico-epidemiológica".
O mal-entendido se baseia na imprecisão provocada pela situação do conceito de fator de risco, na encruzilhada entre a causalidade (teoria), a estatística (técnica) e a medicina (ação de cuidado). A ambigüidade do conceito de fator de risco não é inocente e se baseia no poderoso efeito associativo sobre a mente humana da concatenação de episódios. Com tal bagagem de erros e imprecisão, o fator de risco se converte em carro-chefe de uma atividade sanitária que vai da saúde pública ao tratamento do paciente, não sem grande dose de ideologia preventivista e linguagem moralizante, que se ocultam sob o manto da estatística, em benefício das agendas farmacológicas e comerciais que "combatem" fatores de risco. A alquimia dos números deslumbra os pacientes e a sociedade, e prefere-se a segurança de uma resposta errônea envernizada de estatística à incerteza da ignorância.
Uma vez que os fatores de risco têm pouco poder preditivo, o prudente é empreender programas que interfiram nas condições básicas de toda a população, que não sejam centrados nos fatores de risco de alguns pacientes, por muito "de risco" que sejam. A medicalização excessiva dos fatores de risco tem levado a uma verdadeira transformação cultural nas populações, de modo que hoje, segundo Gérvas & Pérez-Fernández, encontramos na população pessoas sãs (por sê-lo e, sobretudo, por ausência de contato com o sistema de saúde), sãs preocupadas (com os fatores de risco e com a probabilidade de estarem enfermas), sãs estigmatizadas (marcados com algum fator de risco, tipo hipertensão, que lhes introduz no circuito dos cuidados médico-sanitários), e enfermas, reais ou imaginárias (por transformação de fatores de risco em pseudodoenças). Transformamos os sãos em sãos preocupados e, depois, em sãos estigmatizados e em pseudo-enfermos, com o que os deixamos indefesos ante os danos desnecessários, diários e extraordinários, previsíveis e imprevisíveis. Esse processo demanda e reitera a necessidade de prevenção quaternária.

Arte e ciência da prevenção quaternária
Talvez uma das formas mais importantes de se evitar a medicalização excessiva das pessoas e praticar a prevenção quaternária é aliar três ferramentas importantes para o cuidado clínico: abordagem centrada na pessoa, medicina baseada em evidências e centramento do cuidado na atenção primária à saúde, com longitudinalidade. A primeira ferramenta diz respeito ao fato de que existe um sujeito que vive o drama da existência, com seu saber próprio e suas incertezas, medos, angústias, uma bagagem cultural marcada pela vida. Para realizar sua abordagem, deve-se colocar entre parênteses a idéia de diagnosticar doenças e colocar a ciência a serviço do ser humano, como apenas uma ferramenta que poderá ser utilizada ou não. O paciente geralmente tem uma agenda a respeito do assunto para o qual veio consultar o médico, um modelo explanatório sobre como sofre, sua causa e os medos com respeito à sua saúde que agora está abalada. Portanto, mais do que fechar diagnósticos, há de se ouvir as queixas e refletir conjuntamente sobre as possibilidades diagnósticas, terapêuticas e prognósticas. A construção de um plano terapêutico deve ser compartilhada a fim que se possa caminhar junto com o paciente no processo do cuidar.
A segunda ferramenta é a medicina baseada em evidências, a utilização de conhecimentos da biomedicina que tenham o melhor grau de comprovação de sua eficácia pela ciência, aliados ao contexto e anseios do paciente. Ou seja, o consciencioso uso da melhor evidência atual para tomar uma decisão sobre o cuidado de um paciente individual. Pode-se classificar a evidência cientifica em dois tipos: Disease Oriented Evidence - DOE e Pacient Oriented Evidence that Matters - POEM. Os estudos do tipo DOE (evidência orientada à doença) versam sobre desfechos intermediários, como controle de arritmias, redução do colesterol, controle da pressão etc. Despertam mais atenção da mídia e das pessoas, têm raiz numa tendência unicausal e se correlacionam bem com a visão leiga de que "isso é bom para aquilo" - "tome chá disso que é bom para abaixar o colesterol". Esse tipo de pensamento também ocorre na ciência: no exemplo da terapia de reposição hormonal (TRH) para mulheres menopáusicas, cujos estudos preliminares demonstravam que o uso de estrogênio e progestágeno reduzia o colesterol total e aumentava o colesterol-HDL (colesterol bom), logo se deduziu que a TRH era boa para o coração.
Porém, o que mais interessa é saber se a intervenção trouxe real benefício ao paciente, a saber: se aliviou o sofrimento, reduziu a morbidade e a mortalidade e foi menos custosa para o paciente. Esta é a evidência POEM (evidência orientada ao paciente e a que tem importância). Depois que se realizou um ensaio clínico de alta qualidade pode-se verificar que as mulheres que usavam hormônio, apesar de terem um perfil lipídico melhor, morriam mais. Não interessa somente saber que o colesterol melhorou, mas sim se as pessoas estavam vivendo mais e melhor. A promessa da TRH era que, ao se reduzir a perda de massa óssea, diminuir-se-iam os riscos de fratura de colo de fêmur nas senhoras idosas no futuro e ainda se teria um plus de proteger o coração. As mulheres não estavam sofrendo no presente e, sim, tratava-se de medidas preventivas que, uma vez prescritas, só muito tempo depois seriam revertidas.
A terceira ferramenta é o fortalecimento da atenção primária à saúde e da longitudinalidade nela, com o exercício do conceito de watchful waiting ("observação assistida"), ou demora permitida, particularmente importante para os médicos de família e comunidade e para a Estratégia Saúde da Família. Nesta última, o mecanismo de adscrição territorial dos usuários às equipes de saúde da família induz e supõe a longitudinalidade. Starfield estima que 40% dos pacientes que trazem um novo problema ao médico de família melhoram sem que seja estabelecido um diagnóstico específico. A estratégia usada pelos médicos generalistas ou de família é monitorar os indivíduos que apresentam sintomas e sinais inespecíficos por várias semanas. Como o quadro sintomático de uma parte deles, na sua evolução, torna-se mais específico, a hipótese sobre o diagnóstico pode emergir. Durante esse período de observação assistida (ou demora permitida), a probabilidade pré-teste de que o problema seja uma doença passível de definição diagnóstica ou de um teste diagnóstico aumenta. Logo, a prevalência da doença no grupo a ser investigado cresce e/ dessa forma os riscos de falso-positivo e falso-negativo do teste são reduzidos. Assim, a chamada "tintura do tempo" desempenha um papel importante em melhorar os valores preditivos positivos dos testes diagnósticos.
Cabe, então, aos profissionais de saúde aplicar o que diz Gérvas & Pérez-Fernández (p. 68) "A chave da prevenção quaternária é não iniciar a cascata de exames, não classificar o paciente, não abusar do poder de definir o que é enfermidade, fator de risco e saúde. Há que se resistir tanto à pressão da corporação farmacêutica, tecnológica e profissional como também dos pacientes. Há que se desenvolver e estruturar uma ética negativa, baseada no contrato social implícito que exige do médico o comprimento de sua obrigação, mesmo que haja uma demanda insaciável para iniciar a cascata diagnóstica e preventiva desnecessária".
O desenvolvimento e o ensino em larga escala da prevenção quaternária podem e devem se tornar um verdadeiro front estratégico da educação permanente no SUS e na formação dos profissionais de saúde, para que práticas de excelência em atenção primária à saúde possam ser desenvolvidas e consolidadas na Estratégia Saúde Família, que diminuam a medicalização e a iatrogenia do cuidado, ainda relativamente pouco percebidas no Brasil.

3 comentários:

  1. Olá amigo,

    Muito bom!!! Te agradeço por esse artigo.

    O médico tem que saber que dada sua autoridde no imaginário das pessoas, também lhe cabe a responsabilidade do que possa provocar no seu contato com aquele que o procura num estado de entrega, delicado,inseguro...o que causa um diagnóstico ou um prognóstico. Aliás quanto a prognósticos creio que seja de fundamental importância o cultivo da humildade, do não saber. Afinal o médico é quando muito, um cientista e, como tal, investigador e não oráculo. Na maioria das vezes o prognóstico, por exemplo, do "não tem cura" apenas significa que não se sabe como curar. Por isso vemos tantos casos supostamente incuráveis que se curam e outros onde o paciente acaba se enfermando mais e até morrendo para cumprir "obedecer" ou cumprir a profecia do médico. É muito bom que possamos refletir sobre todos esses aspectos que deixam de lado o contato com o indivíduo que sofre quando o tornam um número na estatística. Realmente obrigada pelo seu artigo... Linda maneira de celebrar mais que o dia do médico, o humano que você é.

    Beijãooo,
    Alice

    ResponderExcluir
  2. Olá caro Dr.Ricardo.Pensamentos e atitudes desse naipe engrandecem os médicos que assim atuam, e a medicina.Que as forças espirituais continuem te iluminando cada vez mais,e que ensinamentos desse nível floreçam cada vez mais, por sementes tão bem escolhidas , semeadas e cultivadas.parabéns pelo SEU dia, querido MÉDICO, com letras maiúsculas!

    ResponderExcluir
  3. Ser médico para mim siginifica amar ao próximo como a ti mesmo.
    não é a toa que o sr é meu anjo da guarda.
    Parabéns.

    ResponderExcluir