segunda-feira, 4 de abril de 2016

MEDO DA MORTE – UMA EPIDEMIA MODERNA


Bach - Paixão segundo Mateus

A balada de Narayama - Shohei Imamura

Ao visitarmos Jézéquel (http://www.alainjezequel.com/) se percebe que a medicina transformou e perturbou profundamente a saudável e tranquila relação de outros tempos entre o homem e a morte. Diluída nos contos e rituais religiosos, a morte permeava o cotidiano, o que se pode encontrar entre aqueles de nós ainda saudáveis. Com a atenuação da hegemonia religiosa sobre a questão, o efeito tranquilizador sobre a compreensão da morte e do morrer cedeu espaço ao medo e à necessidade de segurança, pressupostos mórbidos para um rentável mercado em franca expansão, dos seguros e da “segurança”.
Defender a vida não é sinônimo de lutar contra a morte

Nas palavras de Jézéquel:
“A posição da ciência médica relativamente à saúde é profundamente ambígua: se o objetivo da medicina é defender a vida, a tentação de passar da luta contra as patologias para a luta contra o fenômeno perturbador – morte – é grande: de fato, dar este passo – pretender decidir entre a vida e a morte – faz do médico um demiurgo e um “apóstolo” da imortalidade. Uma das consequências desta ambição é levar as pessoas que acreditam e praticam este “culto” a uma extrema exigência, a um pedido cada vez maior de infalibilidade, natural, da parte de uma entidade divina. É um pouco isto o que se verifica, hoje em dia com o número crescente de pacientes que, por investirem uma fé ilimitada na tecnologia e nos conhecimentos científicos, sentem-se no direito de pedirem contas cada vez mais altas ao poder médico. Mas, na verdade, rapidamente se descobre que se a encenação do poder é tecnicamente perfeita e se o mágico tem um ar extremamente competente (hospitais, indústria farmacêutica, corpo médico executando rituais bem ensaiados) tudo isto não passa, em boa parte, de uma ilusão que tem, aliás, consequências graves, à vista de todos nós: as esperanças são realmente enormes – “este médico é realmente o melhor e esta clínica fantástica”, mas as decepções não ficam atrás. Não se trata de um problema de competência médica, mas sim de crença coletiva.”


As pressões sentidas pela medicina referentes às noções de lucro, rentabilidade e consumismo, eventualmente comprometem a lei hipocrática de exercício médico: “primum non nocere”. Nos hospitais a figura do médico perde em importância para gravatas e contingências da beleza decaída, os CEOs e seus gestores. Não deve surpreender, ao leitor atento, a semelhança destes com o estado de cio observável no reino animal, bem como o estado da gestante a incubar quimera a conhecer. Quimera, pois que geneticamente modificada nos laboratórios de treinamento ao que Jogos Vorazes servem de exemplo menor.
Ao escolher a lógica da sociedade midiática, regida pelo efêmero, “fantástico” e espetacular, a medicina e seus órgãos regulamentadores só podem correr atrás do prejuízo ao tentar a posteriori regulamentar aquilo que os meios de comunicação já ofereceram aos reflexos condicionados do consumidor. Informações e imagens de doenças amedrontam e inquietam ouvintes, telespectadores e leitores, incapazes de defesa por absoluta alienação ou conhecimento mínimo de causa. Estímulos dessa natureza, em que o medo é o veículo, geram vítimas indefesas e presas fáceis de qualquer alternativa oferecida subsequentemente, especialmente se rápida e prática.
Lembremos apenas que o rápido e prático, grosso modo, age sobre efeitos; agir sobre causas requer paciência e eventuais esforços sustentados temporalmente. Assim, é imprescindível agora universalizado o acesso à escolarização, que se universalize a educação. Sim, pois acesso a algo é distinto e distante do algo em si; existem várias antessalas até a câmara dos reis. Ao que parece, educação mesmo só quando sua caçula escolarização ou formatação, pré-requisito mórbido, tiver dominado o pedaço...
Quanto à medicina, ouso, enquanto vassalo deste sistema, que o papel do médico é emancipar o paciente, ensiná-lo como ser saudável, torná-lo consciente de modo que suas escolhas sejam escola para quem venha a encontrar. Isso tudo no intuito de gerar uma forma de “epidemia” social, uma “vacinação em massa”, mas de saúde, a favor da saúde; lembrando que não necessariamente ir contra a doença significa ir a favor da saúde. Ir a favor de algo é fortalecer este algo em si, é somar e multiplicar; ir contra algo é enfraquecer este algo e talvez algo em si também (pergunte a um oncologista sobre os efeitos da quimioterapia ou ao infectologista sobre os efeitos dos antibióticos sobre as células do corpo e flora bacteriana intestinal), é subtrair e dividir. O médico ou a mídia, quem vai começar a emancipar primeiro? Saúde é Consciência!
O bombardeio de imagens em ação anestesia a imaginação. Imagens em ação e imaginação, coisas tão distintas com sons tão parecidos... Uma vem de fora e distrai, trai o coração e faz crer verdade o que talvez não seja não! A outra é amiga, silenciosa; é corda do alaúde da alma, faz lembrar e acalma além de tônico para a saúde!
Quando a vida se torna um “ganhar tempo” ou pelo menos um “não perder”, os rituais e a relação com a morte perdem sua essência, conforme belamente contado por Michael Ende (Sobre isso veja: Momo e o Senhor do Tempo). Se o risco de adoecer se torna medo da morte, a “prevenção” se reveste de algo maquiavelicamente perverso, conforme Jézéquel em “Memórias de Território”:
“Em nome da “prevenção” realiza-se um verdadeiro terror organizado: rastreio vaginal, mamografias, análises de sangue e testes (Papanicolau), biópsia, endoscopia; todos estes momentos são vividos na maior das ansiedades, como verdadeiras espadas de Dâmocles, cujo veredito pode decidir num instante o futuro da pessoa. Como estes exames devem ser periodicamente efetuados, a pessoa nunca fica descansada e vive em estado de estresse permanente. O medo da morte, que se resolvia culturalmente, tornou-se um verdadeiro maná para a sociedade de consumo. A morte humanizada e ritualizada foi substituída pela morte patológica e hospitalar, no meio de corredores brancos e inóspitos, máquinas frias e tratamentos aberrantes – resultado da pressão de uma medicina onde se misturam interesses políticos, econômicos e ideológicos”.

De fato a temática é corriqueira nas reflexões sobre saúde, conforme:


Muitas doenças decorrem de hábitos de vida (alimentares, comportamentais, psíquicos, emocionais ou mesmo espirituais) que urgem serem transformados. Assim como a vida é transformação contínua a saúde requer movimento interior de transformação e cultivo de bons hábitos. Os hábitos moldam o caráter assim como este o destino. Se há saúde, fortaleçamo-la antes de atacar a doença; reabilitar é fortalecer as habilidades preservadas antes de agir sobre as que carecem. Primum non nocere. Se há morte é porque houve nascimento e se há nascimento e morte é porque há vida; vida é uma rara palavra sem oposto que comporta a oposição essencial do nascer e do morrer. Estamos manifestos na estranheza de um mundo que nos permite definir as descontinuidades nascimento e morte, mas que nos confunde ao tentarmos definir a tessitura do que seja a vida. Se nascimento é alegria e começo de ciclo porque não exercitar a alegria de um final de ciclo, à semelhança do término de uma graduação? Quem sabe a perspectiva da finitude possa nos impulsionar a um viver mais significativo (Ser) e um pouco menos apegado (ter)?

9 comentários:

  1. Eh, Ricardo!

    Você, sempre brilhante nessa sua navegação contra a mórbida corrente que insiste em nos engolir por todos os lados.
    Precisamos nos encontrar para comemorar TUDO.
    Parabéns!
    Beijo

    Modesta

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    1. Grande Modesta!

      O brilho da Lua vem da luz do sol!

      Só posso agradecer vocês pela luz compartilhada. E agora então, com os contos completos de Tolstói só me resta nadar mais rápido enquanto Leviatã se apressa em sua incansável ronda...

      Será uma honra comemorar TUDO!

      Obrigado!

      Beijo

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  2. Ricardo !!!

    Belo texto, uma nova perspectiva como olhar a vida.


    Gilmar

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    1. Caro Gilmar!

      Perspectivemos então!

      Quem sabe essa onda pega e os dirigentes considerem surfá-la.

      Abração

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  3. Brilhante-irradiante, Ricardo Kérido... como sempre.
    Lendo isso, deveríamos mais é ter medo de VIVER do jeito como andamos vivendo, de modo geral como humanidade neste nossa cantinho do Universo...
    Brilhante-Irradiante Amigo, Gratidão!... :)
    Eleonora

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    1. Kérida!

      Vivamos então bem aqui em nosso cantinho irradiando um pouquinho do que somos, sempre buscando melhorar, silenciosamente...

      Gratidão

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  4. Caro Ricardo, seus textos sempre geram muitas reflexões para mim! Obrigado por compartilhar sua sabedoria!

    Tárcius.

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    1. Grande Tárcius!

      Como bem sabes, a sabedoria do homem é loucura aos olhos de Deus.

      Eu que lhe agradeço pela amizade preciosa.

      Forte e saudoso abraço meu amigo!

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  5. É só marcar, amigo querido. De acordo com as possibilidades de vocês.
    Beijo

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