domingo, 1 de setembro de 2013

LIBERDADE


Por Ana Cristina Guimarães
Desde o início da história humana, quando a consciência humana descobriu-se presa na matéria, a ideia de liberdade tornou-se cara. Nas pinturas rupestres das cavernas pré-históricas, nos primeiros mitos, já podemos perceber uma busca por algo transcendente ao cotidiano.

O desejo pela liberdade é o núcleo central de vários mitos, fábulas infantis, literatura, cinema e utopias. “Liberdade, igualdade e fraternidade”, Ícaro queimando suas asas ao sol, princesas presas em castelos sendo resgatadas por príncipes encantados…

Atualmente, a ideia de liberdade está expressa nas buscas por viagens exóticas, anos sabáticos, caminhadas esotéricas ao Caminho de Santiago e até nas manifestações populares contra o governo, entre outros. Filmes como “Comer, Rezar e Amar” expressam o ideal de liberdade contemporâneo. Nele, a protagonista após uma crise pessoal, busca o autoconhecimento e a liberdade nas viagens pelo mundo, entre prazeres na Itália, meditações no Oriente e novos relacionamentos.

Entretanto, precisamos refletir se isto é a verdadeira liberdade ou se é apenas uma liberdade maquiada, uma pseudo liberdade para nos sentirmos confortáveis, apaziguados dentro de ideias aceitas culturalmente, mas ainda cativos.

O desejo por liberdade nos mostra que ainda não somos livres, pois não desejamos aquilo que já possuímos. Portanto, somos prisioneiros. E qual seria a prisão?

O autor, John Gray, em “A Anatomia de John Gray”, nos adverte de que muitas vezes o excesso de trabalho e nossa rotina atarefada são na verdade fugas à reflexão sobre a existência.

       “A ação preserva um sentido de autoidentidade que a reflexão dispersa. Quando trabalhamos no mundo, temos uma solidez aparente. A ação nos dá consolo pela nossa inexistência. Não é o sonhador ocioso que escapa da realidade. São homens e mulheres práticos, que se voltam para uma vida de ação como refúgio contra ausência de significação.”


Albert Camus no “Mito de Sísifo” compara o homem a Sísifo, um homem da mitologia grega, condenado eternamente pelos deuses a rolar uma pedra até o alto de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava quase chegando ao topo, ela rolava montanha abaixo e ele então recomeçava. Mas, um dia finalmente:

“Um dia apenas, o porquê desponta e tudo começa com esse cansaço tingido de espanto. Começa, isto é importante. O cansaço está no final dos atos de uma vida mecânica, mas inaugura ao mesmo tempo o movimento da consciência. Ele a desperta e desafia a continuação. A continuação é o retorno à mesma trama ou ao despertar definitivo.”

Este é aquele dia no qual, no trânsito, ao final de um dia intenso de trabalho, nos olhamos no espelho retrovisor, e repentinamente descobrimos que apesar do carro do ano, família ideal e sucesso profissional estamos na verdade vivendo uma vida bem mediocrezinha. Também pode acontecer numa tarde perfeita, quando seu filho amado vem mostrar contente que o seu primeiro dente caiu, e por trás da alegria do momento sentimos uma pontada no coração, percebendo a passagem do tempo e dos momentos felizes; e a inevitabilidade da morte. Nos dois casos o porquê desponta.

Sentimos então, o absurdo da existência, segundo Camus.

Nietzsche, no prefácio de “Humano Demasiado Humano”, (dedicado aos “espíritos livres”), descreve:

“Para esta espécie de servos a libertação chega de repente, como um terremoto: a jovem alma é de um só golpe sacudida, derrubada, arrancada-ela própria não entende o que passa. Um ímpeto e um fervor imperam e se apoderam dela como uma ordem; uma vontade, um desejo a desperta para seguir em frente, para onde quer que seja, a qualquer preço; uma violenta e perigosa curiosidade por um mundo desconhecido arde e flameja em todos os seus sentidos. “Antes morrer do que viver aqui”-assim fala a imperiosa voz da sedução, e este aqui, este em casa é tudo quanto ela amou até então.”

Neste ponto, podemos tomar diferentes caminhos. No mito de Hércules, herói semideus da mitologia grega, quando ele passava por trilhas pedregosas do monte Citeron, duas mulheres o pararam:

“Apresentaram-se. Uma se chamava Prazer, a outra Virtude. Cada uma lhe propôs um caminho diferente. A primeira lhe ofereceu a facilidade de uma vida consagrada a distrações. A outra, de aspecto severo, mostrou-lhe um caminho mais penoso, semeado de provas, mas destinado a Glória maior. Preferindo o combate ao lazer, o herói escolheu seguir a que falara por último. Conheceu então a difícil vida dos heróis.”

Prazer, na sociedade contemporânea, metamorfoseou-se nos medicamentos antidepressivos, terapias transcendentais, cultos exóticos, viagens sabáticas, consumismo exacerbado. Vemos Prazer em shoppings e carros brilhantes, em psiquiatras definindo este despertar da consciência como Síndrome do Pânico ou Depressão e receitando uma infinidade de antidepressivos que prometem a felicidade, levando-o a acreditar que foi só um surto temporário. Tudo isto na verdade, são os “aprisionadores”, que tentam novamente escravizá-lo e transformá-lo num zumbi, tão na moda nos filmes atuais.

Não sem razão, uma rede de cinemas de shoppings, durante o pré-comercial de um filme infantil, nos mostra um zumbi engraçadinho e fofo, comendo pipoca e refrigerante… Você se identifica? Eu, sim, com certeza e tenho vontade de jogar a pipoca na tela!




Uma imagem falando por mil palavras!!!!



Para os que resolvem seguir Virtude, os mitos e filósofos advertem; trabalhos árduos e tempos de deserto virão.  Novamente Nietzsche:

“No fundo de suas agitações e de seus transbordamentos - pois pelo caminho, está inquieto e desorientado como num deserto - surge o ponto de interrogação de uma curiosidade cada vez mais perigosa. E no parágrafo seguinte - Esses são os pensamentos que o guiam e que o extraviam, sempre mais avante, sempre mais longe. A solidão o cerca e o envolve, sempre mais estranguladora, mais pungente, esta temível deusa e mãe cruel das paixões - mas quem sabe hoje o que é solidão?”




No Evangelho, Jesus-Cristo dirige-se ao deserto. No Oriente, Siddhartha-Buda sai de seu palácio e segue para a floresta. Nos mitos, o herói abandona sua terra natal e parte em aventuras, muitas no submundo, na terra dos mortos, enfrentando Hades ou dentro de uma caverna.

Em todos os casos, existe um afastamento de sua rotina mecânica habitual, uma percepção da falta de liberdade e uma dúvida em relação a tudo. Abandona-se a terra natal, o lar, o conhecido e se inicia uma busca ou jornada por um tesouro ou algo precioso, mas muitas vezes indefinido.

Seria esta busca um movimento exterior? Um abandonar de todas as obrigações e começar de novo? Uma nova carreira ou faculdade, um novo casamento, um ano sabático em países exóticos? Prazer sussurra... -”Venha fazer esta viagem fascinante... vamos “Comer, Rezar e Amar” que tudo estará certo...

Porém no mundo externo, cotidiano, nada é realmente novo, é só apresentado com uma aparência diferente, é “Maya”, o mundo da ilusão, nos ensina as tradições orientais.

“Conhece-te a ti mesmo” - desafia a esfinge.

Novamente, os mitos e textos religiosos nos mostram através de parábolas como se atinge a verdadeira liberdade. Cristo e Buda a atingiram, os heróis da mitologia grega também. Viajaram para o interior de suas almas, Jesus no deserto, Buda sentado imóvel na “Árvore da Iluminação” e os heróis gregos enfrentando os monstros do Hades. Refletiram e observaram, lutaram com as tentações, os demônios internos em busca do “tesouro”, ou seu ponto imutável - EU SOU - dentro de um mundo mutável. Conheceram a si mesmos. Para começar a pensar em liberdade, podemos estudar e meditar sobre tais exemplos, independente de crenças religiosas.

Só os “espíritos livres” conseguem ter pensamentos, palavras e ações verdadeiramente criativos e tornam-se então co-criadores do mundo em que vivem. Termino com uma poesia criada por um deles, o filósofo e escritor Nikos Kazantzakis, que entendeu o caminho:

Ítaca

Se partires um dia rumo a Ítaca,

faze votos de que o caminho seja longo,

repleto de aventuras, repleto de saber.

Nem Lestrigões nem os Ciclopes

nem o colérico Posídon te intimidem;

Eles no teu caminho jamais encontrarás

se altivo for teu pensamento, se sutil

emoção teu corpo e teu espírito tocar.



Nem Lestrigões nem os Ciclopes

nem o bravio Posídon hás de ver,

se tu mesmo não os levares dentro da

alma, se tua alma não os puser diante de ti.

Faze votos de que o caminho seja longo.

Numerosas serão as manhãs de verão

nas quais, com que prazer, com que alegria,

tu hás de entrar pela primeira vez num

porto para correr às lojas dos fenícios

e belas mercancias adquirir:

madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,

e perfumes sensuais de toda espécie,



A muitas cidades do Egito peregrina

para aprender, para aprender dos doutos.

Tem todo o tempo Ítaca na mente.

Estás predestinado a ali chegar.

Mas não apresses a viagem nunca.

Melhor muitos anos levares de jornada

e fundeares na ilha velho enfim,

rico de quanto ganhaste no caminho,

sem esperar riquezas que Ítaca te desse.

Uma bela viagem deu-te Ítaca.

Sem ela não te ponhas a caminho.

Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.



Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.

Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,

e agora sabes o que significam Ítacas.



4 comentários:

  1. Olá Ana Cristina!
    Dr. Ricardo,
    Obrigada pela reflexão.
    Penso que a liberdade, as vezes assusta.
    É tão mais fácil viver no controle, e culpando os outros...pela falta de liberdade.
    A alma é livre, e tentamos aprisiona lá a todo custo. Muitas vezes temos medo de sentir, de nos ver, enxergar quem realmente somos.
    A procura é longa. Passamos a maior parte de nossas vidas tentando fazer o que realmente queremos, adiamos sempre. E quando talvez esse dia chega; ficamos perdidos.
    Penso também que liberdade é uma conquista, e a prova está dentro de nós. As tentações são muitas.
    A simplicidade, o amor está na liberdade.

    Abraços.

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  2. Dr. Ricardo,
    Sobre o texto que me leva a pensar sobre a LIBERDADE ...a libertação do meu EU, que a vida se encarregou dia a dia de aprisioná-lo, verifico que se eu a desejo, é porque não a tenho e por quê ? Quem a tolheu? os medos, a educação recebida dos meus pais, da escola, da vida, dos outros. E quem sou EU? Nesse momento sinto que sou um conjunto de EUS, sou um covarde? e onde estava essa "Liberdade" de escolher ser "EU"? Nossa...quem sou "EU"? Se minha mente, pensa o que todos pensam, quer o que todos querem, deseja o que todos desejam, somos todos prisioneiros de nós mesmos . Ah! mas se eu me puser a buscar a luz , conhecerei a verdade e ela me libertará...e só assim poderei percorrer o meu caminho e viver tudo o que posso, mas é preciso coragem, para virar-se e ...
    Obrigada pela oportunidade da reflexão.
    Vera

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  3. Muito interessante o texto!!
    Sinto que a liberdade está dentro de nós, dentro de cada um. Mas olhar p dentro pode assustar.
    O que fazer ao deparar-me com o ser livre que sou? O que fazer com todas as regras e crenças que anos de educação me deram? O que os outros irão dizer? Para onde seguir? Como seguir? Quem seguir? Eu?
    Percebem? Basta encontrar a resposta libertadora no seu interior, para tudo aquilo que é externo te prender novamente.
    Passamos uma vida dependendo do outro para ser alguém. No final ou, com sorte, no meio dela, nos damos conta de que já éramos muito antes de nos ensinarem.
    A limpeza da alma começa assim. Basta acreditar em si mesmo, e seguir o Eu Sou.

    Bjss
    Maria Inez

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  4. Cris, que lindo texto.
    Valeu a reflexao... liberdade...
    Sera que temos alguma liberdade, afinal???
    beijos
    Renata

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