sexta-feira, 1 de novembro de 2013

DIA DE FINADOS

Dr. Ricardo,
Sono e seu irmão gêmeo Morte - Tela de 1874 por John William Waterhouse

Sempre que se toca na passagem de vida e morte, é comum associá-la à imagem de uma ponte, tendo como extremidades o nascer e o fenecer da vida.
Como figuração, isso se mostra até certo ponto cabível, mas, a bem da verdade, é inteiramente insuficiente para decifrar tal passagem em sua inteireza.
Isto porque a vida se faz e refaz em seu andamento de laços, nós, abraços, convivência, conversas, entendimentos ou não, mas principalmente de ver e respeitar no outro, em quaisquer relacionamentos, as diferenças, e assim, construir democraticamente uma vida sadia e satisfatória para todos os envolvidos. E mais, a vida é construção, é abrir portas e janelas, é compreender os outros, sem ajuizamentos apressados e enganosos, não esquecendo que as aparências enganam.
Portanto, hoje dia de Finados, deixemos de lado as flores, as velas, os compromissos e obrigações de visita às campas mortuárias, e pensemos nos que foram, rezemos por eles, mas não nos atenhamos à morbidez de apenas cultuá-los. Afinal, o que nos deve restar - isto sim - é a boa lembrança de momentos marcantes, de carinhos recebidos, e oferecidos, de consideração humana pelos que se foram.
Afinal, como bem lembrou Vinicius de Moraes com o seu “Samba da Benção”:
“É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração.”

No mais, tudo não passa de firulas inócuas. Lágrimas que não trazem de volta, como também não pagam dívidas, ainda que sentimentais. Melhor mesmo é cuidar dos vivos, estes sim, precisam de você, assim como você precisa de todos eles, indistintamente. Pois “quando os sinos dobram” (Hemingway), eles dobram também por você.
Aos mortos, sempre a lembrança de uma vida já vivida, Aos vivos a oferta de carinho, da mão amiga, do diálogo, do debate, na construção do outro e de si mesmo, de um futuro feliz, democrático e o quanto possível igualitário de possibilidades e aberto a concretudes infindas de sonhos os mais díspares e dignificantes.
Sei que amanhã
Quando eu morrer
Os meus amigos vão dizer
Que eu tinha um bom coração
Alguns até hão de chorar
E querer me homenagear
Fazendo de ouro um violão
Mas depois que o tempo passar
Sei que ninguém vai se lembrar
Que eu fui embora
Por isso é que eu penso assim
Se alguém quiser fazer por mim
Que faça agora

Me dê as flores em vida
O carinho, a mão amiga,
Para aliviar meus ais.
Depois que eu me chamar
Saudade
Não preciso de vaidade
Quero preces e nada mais
Quando Eu Me Chamar Saudade (Nelson Cavaquinho)

Quando eu morrer, não quero choro nem vela
Quero uma fita amarela gravada com o nome dela
Se existe alma, se há outra encarnação
Eu queria que a mulata sapateasse no meu caixão

Não quero flores nem coroas com espinho
Só quero choro de flauta, violão e cavaquinho
Fita Amarela (Noel Rosa)

Lembremos que a vida tem seu limite, não a faça perder, como o Godot de Beckett, limitando-a na espacialidade e fixando-a numa imobilidade nauseante de ineficácia, numa toca de coelho.
Se ela lhe der rasteiras, e isso sempre ocorrerá, levante-se, o ciclo da vida lhe ensinará a viver, hirto, de olhos bem abertos e com vontade. E sempre no ápice da criação. Há milhares de coisas a serem feitas, não desperdice as oportunidades, fuja das convenções, dos parâmetros, ouse questionar. Tudo está sujeito a questionamentos, Lembre-se, de Baden Powell e Vinícius de Moraes em Berimbau:
“Quem de dentro de si não sai
Vai morrer sem amar ninguém

Capoeira que é bom não cai
Mas se um dia ele cai, cai bem
Capoeira me mandou dizer que já chegou
Chegou para lutar.

É bom lembrar que, na vida, até os bolsões de silêncio são válidos, para podermos olhar para nós mesmos, nossos sentimentos, nossas querências, nossos anseios, mas também a invalidade de nossa vida programada, nosso sentido trágico num mundo de ganância, de esnobismo, de aparências, do “Ter”.
No mundo, não basta abrirmos uma janela, é preciso ver o que acontece lá fora. Não apenas as intempéries, ou as luzes da cidade, a claridade do sol ou do luar, é preciso ir imiscuir-se às suas mazelas, os seus horrores, os seus mortos sem sepulturas.
Viver, ainda que apenas um dia ou algumas horas voltados para o mundo dos mortos sempre satisfaz, de algum modo, mas a volta à vida, com seus anseios, exigências loucuras, amores, paixões, amizades e outros e mais outros que tais, nos fazem saber que não estamos mortos e esse exercício do aprendizado é fundamental para continuarmos a viver intensa e plenamente.
Nesse contexto, torna-se imprescindível cantar, sempre em alto e bom som, e com a garra que a canção invoca, os versos de “Gracias a la Vida” de Violeta Parra
“Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto
Com ellos   distingo dicha de quebranto
Los dos materiales que forman mi canto
Y el canto de ustedes que es el mismo canto
Y el canto de todos que es mi propio canto.”

Esse canto, assim como as homenagens devidas aos mortos não existiriam sem a luminosidade abençoada da vida humana, em todo o seu esplendor de florescência, em suas indagações existenciais e de bem-querência para com os vivos e os mortos.
No dia de finados, muitos vivas aos vivos: deles é o reino da Terra, e muito carinho e recordações para os que já se foram, ainda que “sem lenço, sem documento e nada nos bolsos ou nas mãos”. Destes, – quem sabe? – será o “reino dos Céus, do silêncio, do pó, do passado, do esquecimento”. O tempo dirá!
Mário Inglesi


10 comentários:

  1. Façamos amigos na Terra para que tenhamos quem ore por nós,finados os nossos dias sobre ela.

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  2. Muito bom. Realmente: "é melhor ser alegre, que ser triste, alegria é a melhor coisa que existe..." e caminhar contra o vento, sem lenço nem documento... beijo Ricardo, beijo Mario, parabéns pelo texto. Com carinho Renata

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  3. Interessante o quadro no começo do texto,sono e seu irmão morte, claro que é uma interpretação segundo meu entendimento: A morte tem significados positivos e negativos, positivo é a transformação do ser humano para um estado mais evoluído de caráter e a negativa é a perdição dos seres humanos em atingir esse estado, o sono seria o adormecimento, não somos despertos por isso sonhamos á noite ao invés de irmos de livre vontade investigar várias coisas e somos mortais porque nos encontramos nesse estado, afastado de Deus e de um sentido mais claro de vida, por isso morremos e mesmo voltando várias vidas para cá continuamos com erros e tendo o que melhorar, logo nós somos adormecidos e consequntemente mortos para nosso auto-conhecimento e por isso somos mortais e não imortais como os grande herois verdadeiros, santos, deuses, que conseguiram sair desse ciclo comum de vida.
    Pompeu

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    1. Olá Pompeu!

      O nome do quadro é esse mesmo, "Thanatos and his half brother Hypnos", não é interpretação não! Note o pequeno detalhe em que um dos personagens está na sombra e o outro na luz...

      Abração

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  4. A vida é bela...olhando esse belo quadro podemos ver que tudo é energia...que a morte do corpo existe, que é matéria transformada em energia...e que matéria é energia...sendo assim a luz do corpo se transforma, mas não acaba, a morte não existe...somos uma vida que não se acaba, apenas passamos para outros estágios...Há os que não acreditam, tenho o meu respeito,,,Há os que acreditam, mas tem medo...é um processo...Há os que acreditam...e chegam perto dela...Há os que acreditam..não tem medo...e sabem o momento exáto da partida....! Que viagem é essa, ponte de sombra ou luz, ou melhor dizendo sombra e luz, ou tudo luz...! Vivemos sim com alegria, porque passa rápido, os momentos são do tamanho de um grão de areia, mas os sentimentos são do tamanho do oceano...Viva o presente a cada dia, sinta a energia da vida...a vida é luz, é energia.!

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  5. Do pó ao pó voltamos. Mas, a nossa essência é eterna. Cada um de nós fazemos história.
    E é essa historia que move o mundo. Evolui no tempo e espaço. E a nossa grande luta de sermos cada vez mais sacros para chegarmos ao Pai. Sejamos todos agradecidos pelos que foram e carregaram-nos em seu espirito para esse fim. (KI OK JOO)

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  6. Olá Ricardo,
    O texto trata do assunto mais real de nossas vidas, para o qual pouco ou nada estamos preparados.Sabemos que a fila anda para outro estágio da vida e eu estou até passando a minha vez, para quem quiser passar na minha frente...
    Procuramos nos educar para tudo nesta vida , menos para a morte ; mesmo sabendo que estamos morrendo a cada instante.
    Muito obrigada e muita LUZ para você.
    Vera

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  7. Creio que a pergunta , por quem os sinos dobram seja a mais significativa dentro do tema. Acho que desde jovem, adolescente, compreendi perfeitamente a essência da interrogação , ao escutar sinos dolentes em enterros. Por quem os sinos dobram? Dobram por todos nós. Aliás , aprendi do filme do mesmo nome sôbre a guerra civil da Espanha (Uma tradução livre da letra original). Ao escutar, ler a partir do original, língua mãe espanhol , a dor da perda é maior .

    As letras das músicas da mpb , Nelson Cavaquinho e etc, conhecia todas , extremamente tocantes. Mas, incluo no tema um poeta do tango, Enrico Cadicamo , em prosopopeia , dirigindo-se a uma velha parede , e dialogando com uma flor : se todos anos as suas flores renascem , faça com que volte meu primeiro e todos os outros amores da vida que foram perdidos . Isto me desperta para o fim, a sorrateira.

    Grande abraço.

    Paulo Sérgio

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  8. Sr. Mário vc é o máximo. Gostei muito!!!

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