ASSARHADON, REI DA ASSÍRIA
Uma das
tentativas de Tolstoi de fazer que se veja, através de uma parábola, que a
diversidade é, apenas, aparente; que a realidade é a unicidade.
Assarhadon,
rei da Assíria, conquistou o reino do rei Lahilié. Destruiu todas as cidades,
levou todos os habitantes para a Assíria, mandou matar os guerreiros, e prendeu
o rei numa jaula.
À noite, já
no leito, Assarhadon imaginava suplícios para infligir a Lahilié quando ouviu
um ruído ao lado. Abrindo os olhos, viu um velho de grandes barbas brancas, ao
lado da cama.
- Queres
matar Lahilié? - perguntou o velhinho.
- Sim! -
respondeu o rei, assustado. - Falta-me apenas descobrir um suplício adequado.
- Mas Lahilié
és tu! - tornou o ancião.
- Não é
verdade: eu sou eu e Lahilié é Lahilié.
- Tu e
Lahilié não sois mais que um! - retrucou o velho - Parece-te que não sejas
Lahilié e que Lahilié não sejas tu.
- Como
parece-me? Eis-me deitado num leito macio, rodeado de escravos e, amanhã,
estarei me divertindo com os meus companheiros, enquanto Lahilié será empalado
e se contorcerá até rebentar; e seu corpo será lançado aos cães.
- Tu não tens
o poder de aniquilar a vida dele! - observou o intruso.
- E que dizes
dos 14 mil guerreiros que massacrei e com os quais fiz montanhas de cadáveres?
Eu estou vivo; eles estão mortos. Logo, posso aniquilar a vida.
- Como sabes
que eles não existem mais?
- Porque não
os vejo. Eles foram torturados e mortos e eu não. Eles sofreram e eu me sinto
bem.
- Isso,
também, somente parece a ti. A ti é que torturaste, não a eles.
- Não compreendo!
- disse Assarhadon.
- Queres
compreender? Aproxima-te! - pediu o velho, mostrando ao rei uma tina cheia de
água.
O rei levantou-se,
aproximando-se da tina.
- Despe-te e
entra na água! Assarhadon obedeceu.
- Agora,
quando eu começar a derramar a água sobre ti, mergulha a cabeça! - disse o
velho, enchendo um cântaro de água e inclinando-o sobre a cabeça do rei.
Daí por
diante, Assarhadon não se sentiu mais Assarhadon e sim outro homem: viu-se
sobre rica cama, ao lado de linda mulher. Nunca a tinha visto, mas sabe que é
sua mulher. Ela se levanta e lhe diz:
- Meu caro
marido Lahilié; estavas fatigado por teres trabalhado muito ontem; por isso não
te acordei. Os príncipes já estão reunidos a tua espera, no salão. Veste-te e
vai recebê-los!
Assarhadon,
compreendendo por estas palavras que ele é Lahilié, longe de se admirar e antes
surpreso de não o ter sabido até então, levanta-se, veste-se e se dirige ao
salão.
Os príncipes
se curvam diante de Lahilié; este faz que eles se sentem. O mais antigo dos
príncipes inicia discurso mostrando a impossibilidade de suportar os numerosos
ultrajes do perverso rei Assarhadon e a necessidade de entrar em guerra contra
ele. Lahilié não é da mesma opinião e determina que se enviem embaixadores a
Assarhadon, com o propósito de modificar-lhe a atitude. Encerrada a audiência,
dá instruções, aos embaixadores indicados, sobre o que devem transmitir ao rei.
Feito isso,
Assarhadon, agora Lahilié, vai para as montanhas à caça de onagros, e só ele
mata dois animais. De volta, com seus companheiros, festeja, apreciando a dança
dos escravos.
No dia
seguinte, como sempre, dá audiência e sentencia sobre vários assuntos. Depois,
vai novamente á caça, seu prazer predileto, matando uma leoa e capturando seus
dois leõezinhos. Repetem-se as festas, a música, a dança; a noite, ele a passa
com sua mulher amada.
Decorrem,
assim, dias e semanas, à espera dos embaixadores enviados a Assarhadon, que
outrora fora ele. Os embaixadores só voltam um mês depois, com o nariz e as
orelhas cortadas. O rei Assarhadon manda dizer a Lahilié que a mesma sorte o
aguarda se não enviar, sem demora, o tributo fixado em prata, ouro e madeiras e
se, em pessoa, não lhe vier prestar suas homenagens.
Lahilié,
noutro tempo Assarhadon, reúne novamente os príncipes e se aconselha sobre as
medidas a tomar. Decidem fazer guerra a Assarhadon sem esperar seu ataque.
O rei aceita
o conselho, põe-se à frente do exército e parte para a luta. A marcha dura uma
semana e todos os dias o rei passa em revista suas tropas e lhes estimula a
coragem. No oitavo dia, encontra-se finalmente com as tropas de Assarhadon,
numa vasta planície sulcada por um rio.
Os guerreiros
de Lahilié combatem corajosamente, mas Lahilié, antes Assarhadon, vê os
inimigos descerem das montanhas como formigas, inundarem o vale e rechaçarem
suas tropas. Então, no meio da batalha, precipita-se com seu carro,
trespassando e abatendo os seus inimigos em derredor. Mas, eis que se sente ferido
e é feito prisioneiro.
Por nove
dias, marcha acorrentado entre outros prisioneiros, cercados pelos guerreiros
de Assarhadon. No décimo dia, chega a Nínive e é fechado numa prisão.
Lahilié sofre
menos da fome e dos ferimentos do que de sua raiva impotente. Está furioso por
não poder infligir ao inimigo todo o mal que ele e os seus estão sofrendo. E
toma a firme resolução de tudo suportar com coragem e sem lamentos, para não
dar ao inimigo o prazer de ver que está sofrendo.
Há vinte dias
está na prisão, esperando o suplício. Vê passarem seus parentes e amigos, ouve
os gritos dos supliciados a quem são cortados os braços e pernas ou que são
esfolados vivos, mas sua face não trai nenhuma emoção. Vê sua mulher preferida
ser carregada pelos eunucos. Sabe que ela vai tornar-se escrava de Assarhadon,
e tudo suporta sem deixar escapar um queixume.
Eis que dois
carrascos abrem a prisão, prendem-lhe as mãos com uma correia e o conduzem ao
local do suplício, todo inundado de sangue. Lahilié vê a estaca pontiaguda e
ensangüentada, donde acabou de ser retirado o cadáver de um de seus amigos, e
adivinha que ela está livre em sua intenção. Despem-no. Ele se espanta da
magreza de seu corpo, outrora tão belo e robusto. Os carrascos levantam-no
pelas coxas magras e vão pendurá-lo no poste do suplício.
- Eis a
morte! - pensa Lahilié e, se esquecendo do propósito de se manter corajoso e
calmo até o fim, prorrompe em soluços e implora perdão. Ninguém o escuta.
- Não é
possível! - pensa ele. Estou dormindo; isto é um sonho! - e faz esforço para
acordar. - Eu não sou Lahilié; sou Assarhadon! - diz de si para consigo.
Acorda, de
fato, mas para verificar que não é nem Assarhadon, nem Lahilié, mas um animal.
Assombra-se de ser animal e, ao mesmo tempo, surpreende-se de não o ter ainda
percebido. Pasta, agora, no vale, a erva carnuda. Espanta as moscas com a longa
cauda e sente um peso estranho nas mamas cheias de leite. Perto, salta e brinca
um burrico cinzento-escuro, de dorso listrado e pernas compridas. Escoiceando,
o burrico se curva sob a fêmea, noutro tempo Assarhadon, passa por baixo do
ventre materno e procura a teta com o focinho; depois, encontrando-a, mama e se
acalma.
Assarhadon
compreende que ele é uma jumenta, mãe deste burrinho e não se admira nem se
entristece com isso; antes se alegra. Sente a emoção feliz do movimento da vida
em si e em sua cria.
Subitamente,
alguma coisa voa, sibilando, e penetra em seu flanco. Sentindo dor, a jumenta
arranca a teta da boca do burrinho e, com as orelhas baixas, foge em direção à
récua de burros de que tinha se afastado. O filho corre a seu lado e, quando
vai atingir a tropilha, uma flecha se enterra em seu pescoço; ele fraqueja e
cai sobre os joelhos. A jumenta, outrora Assarhadon, estaca, disposta a não
abandoná-lo. É quando, um ser terrível, com duas pernas, um homem, aparece e
corta o pescoço do burrinho.
- Não é
possível! Ainda é um sonho, pensa Assarhadon, reunindo todas as forças para
acordar.
Grita e, ao
mesmo tempo, tira a cabeça da água. Vê, perto dele, o velhinho que joga, sobre
sua cabeça, a água do cântaro.
- Oh! Como
sofri e por quanto tempo padeci! - exclama Assarhadon.
- Muito tempo?
Nem bem mergulhaste a cabeça e já a retiraste! Observa, o cântaro ainda está
quase cheio... Compreendeste agora?
Assarhadon
nada respondeu, mas fitou o ancião com terror na face.
-
Compreendeste, agora, que Lahilié és tu e que os guerreiros que mataste são
também tu mesmo? Não só os guerreiros, mas até os animais que matas na caça e
devoras nos teus festins, são tu. Pensas que a vida está somente em ti;
arranquei o véu da mentira de teus olhos e percebeste que, fazendo mal aos
outros, fazes mal a ti mesmo. A vida é um todo e tu não conténs senão uma de
suas parcelas. E somente nessa parcela, podes melhorar ou viciar, acrescer ou
diminuir a vida. Melhorá-la tu só o podes, suprimindo as barreiras que separam
tua vida da dos outros seres vivos, amando-os, considerando-os como um outro
‘eu’ em relação a ti. A vida das criaturas que mataste não foi aniquilada,
somente desapareceu dos teus olhos. Crês poder alongar a tua existência e
abreviar a dos outros, mas não tens esse poder. A vida não tem tempo nem lugar.
A que dura um segundo, como a que dura mil anos, têm o mesmo valor. Não pode
ser abolida, nem transformada, porque somente ela existe. Tudo o mais é apenas
ilusão.
Com estas
palavras, o velho desapareceu.
Na manhã
seguinte, o rei Assarhadon mandou suspender as execuções e libertar Lahilié e
todos os outros prisioneiros. No terceiro dia, transmitiu o poder real ao
seu filho Assurbanipal. Retirou-se, depois, para o deserto a fim de meditar sobre
o que tinha aprendido.
Mais tarde,
fez-se peregrino e percorrendo cidades e vilas, ensinava a todos que a vida é
uma só e que os homens só fazem mal a eles mesmos, quando fazem o mal aos outros.
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