Fragmento do Romance d’A Pedra do Reino
- Dizia-me, depois, o
Comendador, ainda assombrado com a violência, a quase demência do ato insano e
brutal que Arésio cometeu. Devo, porém, ao senhor, umas palavras de explicação
que esclarecem, embora não justifiquem, tudo o que ele fez. O filho mais velho
de meu padrinho era naquele ano, Sr. Corregedor, um homem de 35 anos, mais alto
do que baixo. Mas era tão “ossudo, membrudo e fortalezado”, que sua estatura
alta ficava equilibrada pela robustez, dando a impressão de que ele era de
estatura muito pouco acima da mediana. Qualquer pessoa que punha os olhos em
cima dele, via logo que era um homem dotado de extraordinária força física, uma
força que se tornava ainda maior e mais perigosa pela ferocidade de seu
temperamento intratável, sujeito a impulsos estranhos e indomáveis, a
desequilíbrios perigosos e desconhecidos em sua natureza total. Era moreno e
carrancudo, de cabelos bastos, negros e encaracolados. Tinha a barba negra e
cerrada. Não fina, como a de Gustavo, mas dura, grossa, crespa, sempre raspada,
com exceção do bigode, preto e quase retangular, aparado do mesmo tamanho da
boca e cobrindo todo o lábio superior. Suas sobrancelhas também eram bastas e
cerradas, negríssimas, e o sobrecenho, contraído e fechado, contribuía para
aumentar ainda mais a impressão de ferocidade do rosto inteiro. Vestia naquele
instante uma roupa de casimira cinzenta, e, sob os punhos limpíssimos da camisa
branca, viam-se seus pulsos grossos, peludos e nodosos, terminando pela mão
quadrada e grande, de dorso também coberto de pelos, larga e grossa. Dom Eusébio
Monturo, que tinha o hábito de fazer comparações disparatadas e que não
suportava Arésio, costumava dizer que ele parecia um cruzamento, “de Jumenta com
carro preto”, ou então “de um Carneiro preto, lanzudo e criminoso com uma Diaba
fêmea que tivesse trepado com o Carneiro sob forma de Cabra”. Apesar dos
exageros e da língua solta de Dom Eusébio Monturo, um Mestre em Astrologia como
eu, saberia logo que, ao dizer isso, ele estava mais perto da verdade do que os
outros talvez pensassem. De fato, Arésio, nascido a 22 de Março de 1900, tinha
recebido, ao nascer, os influxos malfazejos do Planeta Marte, e pertencia,
exatamente, ao signo do Carneiro, o que talvez explicasse a expressão de
“cruzamento de Carneiro com Diaba fêmea” que Dom Eusébio usava em relação a
ele. Como Vossa Excelência deve saber, Marte, Planeta ubicado no quinto Céu, é
astro ardente, seco, do fogo, noturno e de caráter masculino. Os nascidos sob
seu influxo têm estatura média ou alta, cabelos negros ou vermelhos, às vezes
lisos, às vezes encaracolados, “mas sempre curtos, duros e com aparência de
escova”, segundo nos ensina o Lunário
Perpétuo. O corpo dos “marcianos” acusa brutalidade: a cabeça é forte, o
tronco é quadrado e peludo, os olhos são penetrantes e de expressão fixa, a voz
é forte e metálica. São sempre corajosos, mas rudes e agressivos, com tendência
à irascibilidade, ao ódio e à crueldade. Impõem seu comando e são impelidos, pelo
sangue de seu Planeta, a satisfazer as exigências de seus sentidos violentos e
implacáveis, isto de modo brutal e em tudo – no jogo, nos prazeres do amor, nas
bebidas e, eventualmente, nas orgias a que se entregam. A comida preferida
deles é a carne sangrenta e meio crua, principalmente a carne de caça, assim
como todos os demais pratos preparados com condimentos fortes. Nos casos
benéficos, saem do contingente “marciano” da Humanidade os grandes Guerreiros,
os Soldados e, aqui no Sertão, os grandes Cangaceiros. Nos casos em que o
influxo de Marte pega uma alma pequena e uma compleição mesquinha surgida de
outras circunstâncias, nascem os ferreiros e os açougueiros, que vão
satisfazer, no exercício destas profissões, o gosto marciano pelo sangue, pelos
metais e pelos instrumentos cortantes. Por outro lado, Sr. Corregedor, no caso
de Arésio, o influxo de Marte se agrava, porque o signo em que ele é mais
poderoso é exatamente o do Carneiro, cujo elemento é o Fogo, cuja pedra é o
Rubi – pedra vermelha e cálida –, cujos metais são o Ferro, o Imã, o Azougue e
o Aço, e cuja cor é o Vermelho-sangue. Assim, quem combina o Signo do Carneiro
com alguma conjunção maligna de planetas hostis, tem disposições incontroláveis
para a violência, o egoísmo, os perigos, a sensualidade e a lascívia, para as
rixas violentas e para as orgias, podendo praticar os maiores excessos, e
chegar até os crimes de sangue. É que o Signo do Carneiro impressiona o fel, o
sangue, os rins e as partes genitais, sendo sua influência sobretudo violenta
dentro da primeira Década e “crítica” quando se dá “em trono e exaltação de
Marte”, o que sucede, exatamente, a 22 de Março, dia do nascimento do astroso e
fatídico de meu primo Dom Arésio Garcia-Barreto, o Príncipe Cáprico desta minha
fatídica e astrosa epopeia! Foi somente, pois, por não serem Mestres em
Astrologia, que as pessoas da sala ficaram espantadas com a brutalidade do
gesto, para eles inesperado e absurdo, de Arésio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário