Continuando...
Do mesmo modo que a voz e
seu som preenchem o vazio do silêncio exterior, por meio do ar que vibra as
cordas vocais, existe outra, que vem de dentro, mas que vibra as “cordas da
alma”. Esse som da alma, que para cada um é diferente, é medicação de primeira
escolha, pílula de saúde, no sentido do despertar para o significado
existencial pleno. Escutá-lo pede algum grau de silêncio e saciedade quanto à
necessidade de preencher buracos, sejam eles das bolsas, sapatos, carteiras,
carros, assim como todos os outros símbolos fálicos e uterinos da autoprojeção
social do mundo contemporâneo.
O espaço dos sentidos
deve ser protegido com amor da influência do neuromarketing, assim como hoje se
guarda o dinheiro protegido nos bancos. O que se apresenta aos olhos, ouvidos,
olfação, tato etc., importante saber, quando repetidos ad nauseum, se tornam verdades interiores, se acostuma a elas. De tanto
os órgãos dos sentidos serem estimulados a crer que precisam ser preenchidos
por algo, a pessoa pode passar a acreditar que isto seja verdade, afinal de
contas, se há um buraco ele precisa ser preenchido! A estrutura empática do
humano, relacionada ao sistema dos neurônios em espelho (veja aqui: http://saudeconsciencia.blogspot.com.br/2011/10/neuroplasticidade-e-sabedoria-parte-iii.html), o coloca em situação de
fragilidade frente aos estímulos midiáticos ao preenchimento de buracos e
“vazios” (consumo).
(Envelhecendo
em 1 minuto)
Mas
e o buraco existencial daquele ser que já se fartou de todas as formas de
preenchimento disponíveis nas lojas de conveniência, “lojas de conivência” e
centros de compras? Como preenchê-lo? De fora para dentro ou de dentro para
fora? Ou será um espaço que deve ser mantido vazio? Por que geralmente se cuida
mais em preencher o vazio material que o existencial? Buracos assim, como os
abismos, muito comumente se associam a situações de queda e de oportunidades, como
no conto autobiográfico:
Autobiografia em cinco capítulos
1. Ando pela rua.
Há um buraco fundo na calçada.
Eu caio...
Estou perdido... Sem esperança.
Não é culpa minha.
Leva uma eternidade para encontrar a
saída.
2. Ando pela mesma rua.
Há um buraco fundo na calçada.
Mas finjo não vê-lo.
Caio nele de novo.
Não posso acreditar que estou no
mesmo lugar.
Mas não é culpa minha.
Ainda assim leva um tempão para sair.
3. Ando pela mesma rua.
Há um buraco fundo na calçada.
Vejo que ele ali está.
Ainda assim caio... É um hábito.
Meus olhos se abrem.
Sei onde estou.
É minha culpa.
Saio imediatamente.
4. Ando pela mesma rua.
Há um buraco fundo na calçada.
Dou a volta.
5. Ando por outra rua.
(Texto extraído de "O Livro
Tibetano do Viver e do Morrer" -“ Sogyal Rinpoche -“)
Se
como vimos surpreende a proximidade etimológica de buraco e todo
(Hole x Whole), causa assombro, no inglês mais uma vez, a intimidade entre as anteriores
e santidade (Hole x Whole x Holy); coincidências? Talvez, mas a proximidade de santidade,
sanidade e saúde enquanto estados de coerência interior não pode passar
despercebida.
Viver com a sensação da
necessidade constante de ter que preencher um buraco, seja por fome ou por
carência, é condição comum àqueles que se encontram em estado de sub-saúde ou
mesmo de pré-doença, situações diversas que antecedem o estado de doença. É
precisa muita atenção para desviar deste buraco! De fato, quando se vive em um buraco,
como aquele do sapo que morava no fundo do poço, é custoso acreditar nas coisas
que os sapos que vêm de longe contam...
Os dois sapos.
Os “vazios” de algumas
personalidades como Francisco de Assis, Sidarta Gautama, Mohandas Gandhi, bem
nascidos que se fartaram de seus ambientes cheios, foram preenchidos com algo
que hoje nos serve de nutrientes ou de certa forma inspiração para o viver. Ser
inspiração, um dos efeitos do esvaziar-se para ser parte ao invés de ter
parte de algo, é marca de quem cavou fundo em si e tornou-se recipiente
para a graça, que para ser plena requer que o cálice de cada ser esteja
esvaziado para que sua sacralidade seja alcançada na aliança do humano com o
sobre-humano. Este estado de graça ou sacralidade acontece quando a pureza do Ser, que é eterno, é depurada do prazer do ter, que é temporal.
Possível aproximação do
simbolismo do chamado “Santo Graal”; abrir-se para que a graça do sobre-humano
irradie para o interior do humano, transformando-o e transformando-Se. Nesse
sentido, vale lembrar a advertência de Cristo no episódio do buraco da agulha,
sugerindo que em diferentes reinos ser rico se aproxima mais de um estado de esvaziamento
que de preenchimento.
Finalmente, mas não menos
importante, há que se lembrar: buraco e vazio são coisas muito diversas! Ao que
tudo indica o vazio inexiste na natureza, já os buracos são ubíquos e vão desde
os negros até os dos queijos suíços. De fato é custoso à razão conceber o
conceito de vazio. Como vimos, o próprio conceito contemporâneo de vácuo traz
em seu cerne a ideia de uma população infindável de partículas em estados
energéticos muito baixos e próximos a um equilíbrio, que se mostra nos modelos
e aos aparelhos medidores como algo que se aproxima da ideia de nada; mas, nada
mesmo, como ideia de ausência de qualquer coisa ou como um vazio absoluto, só
pode ser concebido pela mente e pelo pensar humanos que, aliás, são capazes de
qualquer coisa. De resto, a natureza abunda em exemplos do continuum ou plenum
que caracteriza o cosmos.
Mas,
dentre todos os buracos, clama cuidado supremo aquele que leva à prisão da
liberdade. Michael Ende com maestria explora esse buraco no seguinte conto que conduz
ao buraco que mergulha na região do círculo do caos:
Se depois desse singelo
voo ainda houver espaço livre em seu Ser, permita uma sugestão respeitosa de preenchimento:
Parabéns pelo artigo!
ResponderExcluirPreencher o vazio da alma é a verdadeira razão da existência humana e de nossa passagem pela vida terrena.
Esta busca deve ser permanente e consciente!
Cristiano Lemes Garcia
Agradeço as bondosas palavras Cristiano!
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