Dr. Ricardo
Há uma
onda gigantesca que continua encobrindo avassaladoramente nossas grandes
cidades, intimidando, apavorando, atemorizando e paralisando seus cidadãos sob
a alcunha, de “medo”.
Ela
surgiu como que de repente e foi engrossando à medida que os interesses
econômicos e comerciais dela puderam tirar proveito até formarem um
conglomerado que, a cada dia se renova e se estende, com a oferta de produtos
os mais variados, agora de uso obrigatório na defesa de bens e patrimônio
físico e material.
Seu
nome comum e familiar cingia-se, inicialmente, a poucas e corriqueiras situações
fortuitas e inusitadas – diga-se - de pouca frequência, pois ocupava principalmente,
o meio rural, onde, insetos, animais de grande porte ou não, assim como os
fenômenos naturais, como raios e trovões, deixavam seus moradores solertes. Aliados
a isso, abundavam historietas fantásticas de seres como saci, mula sem cabeça e
mil outros seres imaginários que, hoje, boa parte preenche nossas tradições sob
a rubrica de folclore.
Isto
advinha de situações cercadas de mistérios, e abarcava então objetiva e
subjetivamente a maioria das pessoas, afinal não se tinha meios de segurança, a
não ser o enfrentamento e morte dos possíveis algozes.
Felizmente,
hoje, são bastante restritas tais áreas, dado o avançar do progresso, ungido
pelo poder socioeconômico, elevando assim, a patamares citadinos muitas e
muitas dessas regiões.
Com
isso, o “medo” mudou, tornou-se, ainda mais agudo e ferrenho, fazendo dos
sujeitos seres quase impotentes diante da infinitude dos medos imaginários ou
não, dominantes e predominantes em cada ser humano.
Daí
começou o trancar de portas e janelas com grades e mais grades. Mas isto não
bastou, foi preciso promover os guardiões do patrimônio pessoal e físico, os
denominados “policiais, seguranças etc.”. Hoje, nem eles servem tanto aos
desígnios propostos, pois também caíram em desgraça: do descrédito e da desimportância.
Nesse
contesto, apelou-se então para aparelhos como interfones, câmeras, sirenes, olhos
mágicos nas portas.
Toda
essa parafernália não afastou o medo, que os acometia. Então, surgiu o mais
poderoso promotor da tranquilidade: o seguro de bens e pessoas, para
salvaguarda financeira dos perdidos
Essa
nova modalidade prosperou e prospera a cada dia, oferecendo pacotes e mais
pacotes de segurança e indenização.
Paralelamente,
recorreu-se, e, ainda recorre-se, a psicólogos, ou a baldes de tranquilizantes,
ou então à escolha múltipla de livros de autoajuda ou, ainda, nos esparramamos
em ritos e preces nas igrejas das multifacetadas religiões de plantão.
Mas,
tudo isso, foi suplantado pelo maior engenho então descoberto e usado, em
escala nunca vista e imaginada: “a arma” de fogo, de calibres vários a escolher.
Sua grande vantagem é não exigir força do usuário, ser indolor, para quem a usa
e, alcançar os objetivos, em caráter de urgência, urgentíssima: Acabar com os
medos.
A
indústria armamentista pessoal alcançou desde então, pícaros de venda e seus
usuários espalharam-se por todas as camadas da população, uma vez que,
usufruíram dela, tanto os “bons” quanto os “maus”, - os denominados assassinos
– sejam diretos ou de aluguel.
Em caso
de dificuldade em comprar ou arranjar armas e seus projéteis, busca-se o seu
tráfico, cujo trabalho é fácil e não exige nada além do dinheiro.
Nesse
patamar alcançamos, então, a propalada e tão desejada igualdade: a matança
alcança um nível geral, indistintamente também, igualitária, seja em que
circunstância for, de importância e de requintes ou não.
Com
ela, entretanto, perdemos a liberdade. O medo tomou conta de todos.
Trancafiamo-nos, e isolamo-nos em verdadeiros “Bunkers”. O outro só vemos do
alto de nossos edifícios, a comunicação, caiu por terra, agora só pelos meios
eletrônicos, Nada de tête-à-tête. Sair só de carro particular, assim mesmo, com
blindagem, sempre que possível.
A
paranoia do “medo”, sufoca e paralisa, atingindo-nos com doenças as mais diversas,
em sua maioria duradouras, pesarosas e mortais, além de forçar discriminações,
e preconceitos, atiçar ódios e revoltas, ver o “outro” apenas como inimigo, a
ser combatido e eliminado, nos torna carcereiros covardes, estátuas de olhos
que não veem, de ouvidos moucos e bocas sem vozes, mudas como o material que as
fez.
Todavia,
as indústrias afins ou paralelas, ligadas às doenças e à morte, em razão do
“medo” crescem dia a dia e seus índices, hoje, atingem percentuais altíssimos –
talvez maiores que os das guerras espalhadas pelo nosso universo -, sendo
necessário então, criar, - oh céus! - de maneira “populista” todo um arcabouço
de incentivos e, obviamente, programas de incremento ao “mais médicos”, mais
hospitais, mais funerárias, mais terrenos destinados à moradia eterna’, mais
isso, mais aquilo, etc. e etc.
Afinal,
tal como nos declara o poeta português Alexandre O’Neil (1924-1986):
“O medo
vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o
luxo blindado
de
alguns automóveis
Vai ter
olhos onde ninguém os veja
Mãozinhas
cautelosas
enredos
quase inocentes
ouvidos
não só nas paredes
mas
também no chão
no teto
no
murmúrio dos esgotos
e
talvez até (cautela!)
ouvidos
nos teus ouvidos”
........................................................
(“O Poema
Pouco Original do Medo)
Mas,
para todos os fins, tal como no poema de Drummond, precisamos alijar a pedra ou
o “medo”, ou qualquer outro empecilho que nos impeça de viver, para podermos
então, declarar como o poeta, nesse
mesmo poema:
“Nunca
me esquecerei desse acontecimento
Na vida
de minhas retinas tão fatigadas
Nunca
me esquecerei que no meio do caminho
Tinha
uma pedra”
Se não
soubermos lidar com os medos que nos afligem – a exemplo das crianças com a sua
leitura dos contos de fadas infantis ou trabalhá-los de modo a afugentá-los de
vez do nosso cotidiano, com visões e práticas adequadas, isentas de moralismos
e ajuizamentos apriorísticos inidôneos – aí sim, os medos nos envolverão
objetivamente, em vista de fatos políticos, sociais e econômicos que realmente nos
colocarão numa teia kafkiana amedrontadora, de emaranhado sem precedentes e de
difícil ou impossível saída ou retrocesso.
Portando,
ao abraçar o desfraldar do “Saúde é Consciência”, conviria lembrar-se - sempre que possível - da
abrangência e profundidade que o lema pode ter para o alcance e plenitude de
uma vida única, quiçá curta, mas vivida de modo íntegro e participativo, sempre
na busca precípua da feliz convivência com todos os nossos pares, neste pequeno
e único espaço que habitamos.
Se isso
não se fizer- Oh Senhor! – Valei-nos:
“Fez-se
do amigo próximo, distante
Fez-se
da vida uma aventura errante
De
repente, não mais que de repente”(1)
Poesias
Completas, Vinicius de Moraes. (1), Ed. Aguilar
E mais,
sentir medo, - acreditem - é destruir as possibilidades de aceitar e usufruir das
coisas novas que a própria modernidade vem mudando radicalmente em nossas vidas
com a chegada benfazeja da informática, e de aparelhos novos que ajudam e
programam a vida diária, modificando, inclusive, o nosso tempo de ócio, prazer
e lazer.
Mário Inglesi