Duas visões sobre um
mesmo assunto por dois humanos geniais: Erich Fromm e
Josué de Castro. Mas qual texto pertence a qual autor?
Com
efeito, a cultura não exerce somente uma influência benéfica, como também
prejudicial, em nossas funções morais e intelectuais. Os seres humanos dependem
e precisam uns dos outros. Mas a história humana até agora só tem sido
influenciada por um único fato: a produção material não foi suficiente para
satisfazer as necessidades genuínas de todos os homens. A mesa foi posta apenas
para uns poucos dos muitos que a ela queriam sentar-se e comer. Os mais fortes
trataram de conseguir lugares para si mesmos, implicando isso terem de evitar
que outros obtivessem assento à mesa. Se eles tivessem amado a seus irmãos
tanto quanto foi preconizado por Buda, pelos Profetas ou por Jesus, teriam
partilhado seu pão ao invés de comerem carne e beberem vinho sem eles. Acontece,
todavia, que sendo o amor a mais elevada e mais árdua conquista da raça humana,
não é desdouro para o homem o fato dos que puderam sentar-se à mesa e desfrutar
as coisas boas da vida não terem querido dividi-las, e portanto se viram
compelidos a alcançar poder sobre os cobiçosos de seus privilégios. Este poder
foi amiúde o poder do conquistador, o poder físico que obrigava a maioria a
satisfazer-se com seu quinhão. Mas o poder físico nem sempre foi possível ou
suficiente. Tinha-se de dispor de poder sobre os espíritos das pessoas a fim de
impedi-las de usarem seus punhos. Este poder sobre a mente e o sentimento foi
um elemento necessário para a manutenção dos privilégios da minoria. Neste
processo, entretanto, os espíritos dos poucos foram deturpados tanto quanto os
dos muitos. O guarda que vigia um prisioneiro torna-se quase tão prisioneiro
quanto este. A “elite”, obrigada a controlar os não “escolhidos”, tornou-se
prisioneira de suas próprias tendências restritivas. Assim, o espírito humano,
tanto dos dominadores quanto dos dominados, desvia-se de sua finalidade humana
essencial, a de pensar e sentir humanamente, utilizar e ampliar as faculdades
de raciocínio e de amor, inerentes ao homem e sem cujo desenvolvimento total
ele se torna inválido.
Neste
processo de desvio e deformação, o caráter do homem se deturpa. Objetivos
opostos aos interesses do verdadeiro eu humano passam a ser preponderantes. Seu
potencial de amor se empobrece e ele é impelido a desejar poder sobre os
outros. Sua segurança interior diminui e ele é levado a procurar compensação
por uma sede insaciável de fama e prestígio. Ele perde o senso de dignidade e é
forçado a converter-se em uma mercadoria, indo buscar o respeito próprio em sua
“vendabilidade”, em seu sucesso. Tudo isso contribui para o fato de aprendermos
não só o que é verdadeiro, mas também o que é falso. E de ouvirmos não só o que
é bom, mas nos acharmos constantemente sob a influência de ideias nocivas à
vida.
Isto
se aplica a uma tribo primitiva onde leis e costumes rigorosos influem na
mente, mas também se aplica à sociedade moderna com sua alegada libertação do
ritualismo rígido. De muitas maneiras, a alfabetização e o aumento dos meios de
comunicação em massa tornaram a influência dos chavões culturais tão eficaz
quanto em uma cultura tribal pequena grandemente restrita. O homem moderno está
exposto a um “barulho” quase incessante, o barulho do rádio, da televisão, dos
cabeçalhos dos jornais, dos anúncios, ou filmes, cuja maioria não instrui
nossos espíritos, mas sim os embota. Estamos expostos a mentiras racionalizadas
disfarçadas de verdades, a absurdos fantasiados de bom-senso ou de maior
sabedoria do especialista, a conversas hipócritas, a preguiça intelectual ou
desonestidade, falando em nome da “honra” ou do “realismo”, conforme o caso.
Sentimo-nos superiores às superstições de gerações de antanho e das chamadas
culturas primitivas, e somos constantemente martelados pela mesmíssima espécie
de crenças supersticiosas que se proclamam a si mesmas como os últimos descobrimentos
da ciência. É de surpreender, então, que acordar não seja apenas uma benção,
como também uma maldição? É de surpreender que adormecidos, quando a sós conosco
mesmos, quando podemos olhar-nos sem ser incomodados pelo barulho e pelas
tolices que nos cercam durante o dia, sejamos mais capazes de sentir e pensar
nossos sentimentos e pensamentos mais valiosos e mais autênticos?
Certamente, em alguns
trechos deste livro o leitor poderá sentir certa paixão nas palavras do autor,
mas é a paixão pela verdade, que é a poesia da ciência. Paixão pelos problemas
humanos em sua totalidade e em sua universalidade. O fato de o autor fazer uso,
em alguns trechos, de tintas um tanto negras deve ser considerado pelo leitor
uma consequência inevitável de ter sido este livro – documentário de uma era de
calamidades – pensado e escrito sob a influência psicológica da pesada atmosfera
que o mundo vem respirando nos últimos quinze anos. Atmosfera contaminada pela
corrupção, pela frustração e pelo medo e abafada pela fumaceira das bombas e
dos canhões, pela pressão das censuras de toda ordem, pelos gritos e clamores
das vítimas da guerra e pelos gemidos surdos dos aniquilados pela fome.
Acreditamos que já é
tempo de precisar bem nosso conceito de fome – conceito demasiado extenso e,
portanto, suscetível de confusões. O nosso objetivo é analisar o fenômeno da fome
coletiva – da fome que atinge endêmica ou epidemicamente grandes massas
humanas. Não só a fome total, a verdadeira inanição, que os povos de língua
inglesa chamam starvation, fenômeno em
geral limitado às áreas de extrema miséria e contingências excepcionais, como o
fenômeno muito mais frequente e mais grave, em suas consequências numéricas, a
chamada fome oculta, na qual, pela falta de determinados princípios nutritivos
indispensáveis à vida, grupos inteiros de população se deixam morrer lentamente
de fome, apesar de comerem todos os dias.
É principalmente o estudo
dessas fomes parciais, dessas fomes específicas, identificadas pela ciência moderna
em sua infinita variedade através do mundo inteiro, que constitui o objetivo de
nossos trabalhos. Verifica-se pois que o nosso conceito de fome abrange desde
as deficiências latentes e as carências alimentares rotuladas normalmente como
estado de subnutrição e desnutrição, até os estados de inanição absoluta.
... as possibilidades que
tivemos de entrar em contato com renomados especialistas em sucessivas
conferências mundiais da F.A.O. (Food and Agriculture Organization of the
United Nations) e as visitas que levamos a efeito em três diferentes
continentes, recolhendo informações de toda ordem acerca do problema da fome,
forneceram as bases da documentação científica deste nosso ensaio.
Fontes:
Erich Fromm – A Linguagem
Esquecida 3ª ed.
Josué de Castro –
Geopolítica da Fome – Vol.1 8ª ed.