Por Michael Ende: Representante da Sabedoria Humana
A ponte que já estamos construindo há muitos
séculos, jamais ficará pronta.
Qual mão estendida que ninguém agarra, ela se
ergue sobre os recifes escarpados da nossa fronteira, sob os quais está o
abismo negro e sem fundo. Seu arco abaulado para cima desaparece em algum lugar
lá fora, na névoa espessa que se alça constantemente das profundezas.
Não se pode completar uma construção como
essa, caso não se construa também a partir do lado oposto. E até agora nós
nunca pudemos descobrir qualquer sinal de que alguém estivesse trabalhando do
outro lado, num projeto como esse. E provável que as pessoas de lá ainda não
tenham notado nossos esforços. Muitos entre nós chegam a duvidar de que exista
um lado oposto. Essas pessoas fundaram no decorrer dos últimos dois séculos uma
Igreja originária da antiga doutrina ortodoxa, cujos membros são designados com
o nome de Unilaterais. Originalmente tratava-se de uma alcunha que os ortodoxos
lhes deram. Mais tarde, porém, eles mesmos assumiram esse nome e, desde então,
ostentam-no com um certo orgulho. No entanto, sua convicção não os impede de
maneira alguma de participar com todas as forças na construção da ponte, como
prescreve nossa ética. Por isso mesmo, eles não são mais perseguidos como
acontecia em tempos antigos, senão que são vistos como tendo os mesmos
direitos, ou quase todos. As pessoas os reconhecem por uma pequena incisão
vertical no lóbulo esquerdo, através da qual eles confessam sua
unilateralidade. Em compensação, os outros que formam a maioria ortodoxa, denominam-se
os Meios. Eles não duvidam da existência de um outro lado, mas sabem que ele é
inalcançável.
Embora a ponte não se alongue sobre a metade
do nosso lado, existe um intenso tráfego nela. Pode-se ver ali a qualquer hora
do dia ou da noite veículos, cavaleiros, pedestres, liteiras e carregadores,
dirigindo-se a ambas as direções. Hoje em dia não poderíamos existir sem
relações comerciais com o outro lado, pois todos os medicamentos e uma grande
parte dos nossos víveres vêm de lá. Em compensação, nós lhes fornecemos jarros
de barro de todos os tipos, tijolos, instrumentos de metal e barro que
extraímos de nossas minas.
Para os estranhos, muitas vezes, é difícil
compreender como nós aceitamos e vivemos com esse fato que lhes parece uma
contradição evidente. Nossa religião nos proíbe – e nisso não existe nenhuma
diferença entre os Unilaterais e os Meios – de duvidar que só existe o lado da
ponte que nós mesmos construímos. Os fanáticos e hereges que apareceram vez por
outra em nossa história foram levados sem muitos rodeios até o lugar onde
termina nossa ponte e obrigados a caminhar para frente. Naturalmente eles
despencaram no vazio.
Aqueles que não nasceram e cresceram em nosso
país acham difícil compreender que o pressuposto para o comércio entre nós e o
outro lado baseie-se justamente no fato de que temos a mais profunda convicção de
que eles não existem. Se nós abalássemos seriamente esse fundamento da nossa
doutrina, então – disso estamos seguros e todos nossos livros santos o
comprovam –, imediatamente, desmoronaria a parte da ponte por nós construída e
estaríamos perdidos. Portanto, os viajantes podem tratar de frear a língua e
não tentar pesquisar a fundo o segredo da nossa fé. Senão estarão correndo o
risco de sofrer o mesmo destino que todos os hereges do nosso próprio povo.
Neste caso, sofreriam no próprio corpo e saberiam que nossa ponte nunca foi
concluída e que entre nós e o outro lado ainda existe o abismo.
No caso de um casamento – os quais a propósito
ocorrem não com pouca freqüência – entre uma filha ou um filho do nosso país
com uma filha ou um filho do outro lado, é comunicado alegremente por um ou pelo
outro como não tendo existido. A diferença em nossas confissões reside
simplesmente no fato de que a fórmula dos Unilaterais diz: “eu não vim de parte
alguma, pois o lugar de minha origem não existe. Por isso não sou ninguém e
assim aceito por esposo (por esposa)”, enquanto a dos Meios diz: “de lá, de
onde eu vim, é impossível que eu pudesse vir, por isso não estou aqui e assim
eu aceito como esposo (como esposa)”. Com esta cerimônia, as pessoas recebem os
plenos direitos civis em nosso país, e passam a valer desde então como pessoas
de verdade, com todos os direitos e obrigações de um cônjuge.
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