Mês
passado em casa, lua nova, um morcego apareceu; uma semana após minha visita a Rubem
Alves em Borboletas e Morcegos. Estranho, um rato que voa; voa à
noite, sem ver não, sem vergonha. A palavra morcego tem origem no nome arcaico
para "rato", "mur" (do latim mure) com "cego",
significando, portanto, "rato cego". Mas ao contrário do que muitos
pensam, os morcegos têm boa visão; o que, entretanto não os poupou do apelido que
pegou, e mesmo enxergando ficou rato cego.
Também,
néctar para beija-flores, que de dia voam na sala em casa, fica na varanda às
vezes até tarde. Acostumou, quando eu esquecia, beber também. Deve ter se
sentido em casa, mas fora o néctar, em casa só tem livros de ler. Tentou uma
revista e pus para fora com revisteiro e tudo! Vampiro letrado nunca havia
visto antes.
Fiquei
olhando da janela e quando saiu do revisteiro, peguei de volta e fechei a
porta. Bicho esquisito, o que veio fazer aqui pensei. Seria ele oriundo de
algum dos três poderes, fugindo da cassação? Talvez, olhando bem, suas vestes me
lembraram de ternos e togas, máscaras do poder. Não me satisfiz, tantas
sacadas, porque bem na minha?
Coloquei
luz, joguei água, apontei com a lanterna, testei ponteira laser, nada, quieto,
imóvel, barriga para baixo. E dormiu lá! Ainda tentou entrar em casa, raspou a
porta, mas não abri!
Dia
seguinte estava lá, barriga para baixo, estranho, pensei que dormisse de ponta
cabeça, mas porque ficou ali e não voou à noite? Mais água, cutucadinha com
vassoura ao que sibilou abrindo as asas – Qui, qui, qui, qui... Matar nem
pensar, mas alimentar e cuidar também estavam fora de cogitação.
Os
prejudicados durante o dia foram os passarinhos, ficaram sem o néctar que
penduro todo dia.
Uma
hora ele tem que sair daí, não é possível, se chegou vai... Tinha que ser um quiróptero?
Não podia ser um pássaro? O que esse bicho quer comigo?
Na
estória de Rubem Alves, os olhos dos morcegos atrofiaram por terem escolhido
viver nas cavernas. O que ele teria vindo fazer aqui na Rua Alves Guimarães,
curiosa mistura de Rubem Alves com Guimarães Rosa?
Seria
ele hematófago? Primo do Batman? Herbívoro? O que queria aqui?
Foi
um tempo de introspecção; sete dias, uma lua nova passada em reflexão. Aliás,
agora escrevendo recordo que lua nova é nome de livro sobre vampiro. Lua nova,
crepúsculo, Drácula, variações de um tema comum. Eu que gosto de borboletas,
bicho simples, do povo, inseto, visitado por um quiróptero mamífero
Hollywoodiano associado ao poder e aos governantes, sinal ou aviso?
Na
infância, além do Batman e o morcego vermelho, sua paródia, tinha ainda o
batfino - BATFINO E HUGO AGOGO - Morcego lembrança!
Ligados
à ideia da imortalidade permeiam o imaginário, e se por um lado geram bilheterias
milionárias (Batman, Crepúsculo, Drácula), por outro estimulam o pensar apegado
de uma ciência que busca no plano físico eternizar uma humanidade atualmente
condenada à temporalidade finita. Afinal, não é disso que trata a clonagem, o
congelamento de embriões, em alguns casos corpo inteiros, técnicas
antienvelhecimento, domínio funcional de células totipotentes e pluripotentes? Penso
que sim, mas tudo isso nos fará mais felizes ou mais apegados? Decisão
importante essa de viver em preparo para apegar ou para se apagar. Efemeridade Eterna
versus eternidade efêmera; pensemos juntos qual aparenta maior potencial
salutogênico e como se associam aos conceitos de saúde e doença. A doença tem
várias roupagens ao contrário da saúde e seus modestos hábitos.
Curiosa a semelhança do
poético “O amor é cego” com morcego; de fato as histórias de morcego sempre têm
paixões evolvidas: Batman, Drácula, Crepúsculo, Lua nova etc. Amor apegado esse de morcego, quer morder para ficar dono do outro. Desconfio! Seria a nova artimanha do TER amor a infiltrar o delicado e mal resolvido tema humano do SER amor? Ter amor lembra terra e teratoma, tranca; Ser, céu e sereno, solta. De qualquer modo, nesta literatura de morcegos,
os “heróis” são muito sensíveis, verdadeiros radares.
Radar!
Um PALÍNDROMO! De trás para frente e de frente
para trás, em si traz o próprio fenômeno reflexão “RA D AR”. Devemos ser mais
atentos à etimologia e aos movimentos das palavras, especialmente quando
ocorrem em nossa língua materna. Neste caso RA é a própria imagem do ar que sai
da boca, veja você; e AR é a própria imagem do ar voltando. RA e AR brincando
em torno do D.
Falando
em brincar, me alivio ao escrever onde a insólita situação ganha sentido. Nesse
meio tempo ele permanecia lá, barriga para baixo, dia e noite; estaria doente?
Com fome?
Fosse
um bichinho bonito eu teria dado comida com certeza, mas o preconceito aparece
onde a gente menos espera! A beleza, essa garota que abre e fecha portas,
descobri também no mundo animal, depois das modelos, moças da previsão do tempo
e as que leem as notícias que as mandam ler. Que mundo fecundo e belo nesta
feia criatura que me auxilia nestes pensares sociológicos. Aliás – você leu? –
eu li, “A beleza salvará o mundo” do búlgaro Tzvetan Todorov? Como pode um
livro falar tanto sendo mudo não é mesmo? Confira...
E
o morcego lá, toda manhã, resistindo à água apesar de não parecer muito
agradado. Mas porque não ia embora? Do quarto para o quinto dia não tentava
mais entrar em casa, ou melhor, não raspava mais a porta com sua asa à noite.
O
que queres comigo animal? Vários amigos com quem partilhei ofereceram ricas
explicações a respeito do simbolismo de tal visita. Apesar do asco nas
fisionomias ninguém deixou de notar o aspecto profundo e inconsciente associado
à criatura. Mamífero também, mas com asas de voar. Porque não voava daqui do vigésimo
primeiro andar? Aliás, porque haveria de ter voado tão alto? Medo de cair? Medo
de voltar?
Fica
aí criatura, mas comida não te sirvo; ofereço meu olhar e banho todo dia,
ciente de seu desconforto, mas comida não.
Talvez
estivesse fraco em busca de local para fazer sua passagem. Pensei finalmente
que como do néctar dos pássaros pendurado na sacada muitas vezes se alimentou,
quando durante a noite pendurado o mesmo ficou, devesse estar ali para fraco em
segurança para o além partir.
E
assim o fez um quarto de lua após chegar:
Asas abertas deixou o corpo, a vida
assim se libertou.
No último voo, de presente deixou seu
corpo estendido
na sacada de quem um dia sem saber o
alimentou.
Caro animal, companheiro de jornada,
aqui lhe presto esta homenagem;
seja sua vida longa nessa imagem
se não pude oferecer melhor
camaradagem.
Que o céu dos morcegos, onde o amor
não seja cego,
lhe receba em festa n’outra varanda,
onde a vida seja plena e os seus
menos egoístas que eu.
Nesse dia em que partiste, minha voz
se calou,
rouco que estou;
seja meu silêncio oferta à rica
reflexão
nesta breve lua nova,
sua última.
Naquela
noite, após o velório da manhã, Lua e Plutão conjuntos em proximidade a Vênus,
tudo em Capricórnio, céu limpo, porta da sacada aberta, ainda pensei – se “Saúde
é Consciência” todo ato traz consequência – pouco antes de voar em sonhos.