Nesta
semana, em 20/02/13 sob a luz do sol nascente, o médico da consciência e
pensador brasileiro Marco Tullio de Assis Figueiredo, pedra angular da prática
de cuidados paliativos no Brasil, prosseguiu em sua jornada cósmica. Que nossa atenção
ao processo existencial e seu significado seja redobrada em respeito a quem
tanto se dedicou a expandir a compreensão sobre a vida e o bem viver e também sobre
a morte e o “bem viver”.
A
seguir, um discurso
do Dr. Derek Doyle, fundador e primeiro
presidente da Associação
Internacional para Hospice e
Cuidado Paliativo, agradecendo a homenagem que lhe foi prestada por ocasião do IV Meeting and Symposium do AIHPC, em setembro de 1999, em Geneve, na Suíça (traduzido pelo Prof. Dr. Marco Tullio de Assis Figueiredo).
Prof. Dr. Marco Tullio de Assis Figueiredo |
Você se convence de que
está ficando velho quando se surpreende olhando para trás e não olhando para
frente, e percebe que as suas conversas contêm mais estórias do que sonhos e
propostas. Eu agora estou na minha
fase de contador de estórias, portanto eu lhes agradeço por me aturarem uma vez
mais. Essa vai ser a
despedida de um homem velho, mas quem sabe, como o Frank Sinatra eu poderei voltar para mais uma festa de despedida, e
por isso o meu título, Até Logo.
Eu gosto de pensar que toda a minha vida profissional foi
dedicada a cuidado paliativo, apesar de em grande parte não ter sido
glorificada com esse nome. Como cirurgião missionário na África, eu
possivelmente tenha curado algumas pessoas, mas a maior parte do meu tempo foi
passado tentando aliviar o sofrimento através da paliação cirúrgica. Como
médico de família em tempo parcial, na Escócia,
eu aprendi como prover cuidado de conforto (um bom nome alternativo para
cuidado paliativo) para centenas de pacientes e suas famílias, sem jamais
pensar em chamá-lo de cuidado paliativo. Em
minha atividade hospitalar naquela época, assim como a maioria dos médicos do
hospital, naturalmente eu tentava convencer a mim mesmo que eu estava curando
as pessoas. Nos últimos 20 anos eu não tenho tido ilusões - todos eles tinham
sido totalmente submetidos a cuidados paliativos. Eu tenho visto muito e aprendido muito. São algumas das
lições destes 40 anos à beira do leito que eu compartilho com vocês agora, bem
cônscio que nenhuma de minhas impressões e conclusões sejam originais.
A primeira observação é sobre cura. A atual atitude
da sociedade, e particularmente da profissão médica, em curar, perturba-me.
Quer me parecer que ninguém tem o direito de esperar a cura, por mais maravilhoso
que seja estar curado. O que
todos têm é um direito inalienável a cuidado paliativo. Nós estamos errados se considerarmos o cuidado paliativo como
um derradeiro luxo quando tudo mais fracassou, mas é assim que ele é encarado
na maioria dos países. Parece-me que muitas pessoas, inclusive governos, veem o
cuidado paliativo como a cereja em cima do chantilly no topo do bolo de frutas.
O cuidado paliativo
apropriado deve ser acessível e prontamente utilizado pelas pessoas, qualquer
que seja a sua doença, a sua fé religiosa, a sua cor, a sua riqueza ou pobreza,
a sua política, ou o país em que mora. Se
tenham ou não tido tratamento curativo é irrelevante.
Enquanto o cuidado
paliativo continuar a ser visto como o tratamento da fase final do câncer, a
ser oferecido quando tudo mais falhou, ele não se propagará e a milhões de
pessoas será negado um direito humano fundamental. Nós devemos parar de acusar os outros por não entenderem o
que é, e quem é elegível para ele. Se nós não o definirmos, se nós não o explicarmos,
se nós não o promovermos, então nós devemos aceitar a culpa se o mundo o
rejeitar.
A segunda coisa que me tem atingido em anos recentes é que a
morte é parte inevitável e inegável da vida. Ela não é um fracasso médico; ela não é um desastre; ela não
é algo de que médicos e enfermeiras se sintam envergonhados. O que nos deve
envergonhar não é a morte, mas o fracasso em aliviar o sofrimento quando, como
todos nós sabemos, existem meios de consegui-lo. Não só a morte é parte da vida, mas ela pode
também ser a ocasião de um crescimento pessoal, de reconciliação, de construção
de uma ponte entre o Homem e Deus,
de excitantes introversões e mesmo de auto descoberta.
Um dos desafios de cuidado paliativo e um que eu considero
como único para a nossa especialidade, é a criação de ambiente para tal
crescimento. Talvez isso exija um
amadurecimento e sensibilidade que poucos de nós possuem. Nosso treinamento valoriza a nossa capacidade diagnóstica e
expande nossos dados básicos, mas isso nos torna mais sensíveis, mais
empáticos, mais compassivos? Eu
acho que não.
Quando nós falamos de desafios, não podemos esquecer o
desafio de ensinar e entusiasmar nossos colegas profissionais e estudantes. Eu
suspeito que nós não estejamos agindo correto. Nós estamos enchendo os
livros com doses e dados, quando nós deveríamos tentar mudar as atitudes. Talvez isso não seja a única coisa errada. Por todo lugar no mundo
onde eu viajo, eu encontro profissionais de cuidado paliativo
que acham que eles têm de justificar a sua existência, particularmente se eles
possuem um status de especialista, e eles assim procedem desfiando fatos e
números ao invés de compartilhar alguns aspectos sensitivos profundos que são
característicos de cuidado paliativo.
Existem alguns profissionais de cuidado paliativo que nos
consideram possuir o monopólio da compaixão. Nós não temos tal monopólio. Outros acham que cuidado paliativo é um dom inato. O mais triste é que alguns existem que
acham que nada há que aprender. Eu acredito que todos eles estão equivocados.
No final de contas eu estou convencido que os profissionais de cuidado
paliativo como eu, não são julgados pelo número de pessoas que nós tratamos ou
pelo número de serviços que nós fundamos. Nós
não seremos lembrados pelo número de artigos que tenhamos publicado, nem pelos
livros que editamos. Nós
seremos julgados pela nossa vontade, na verdade, nossa ansiedade em
compartilhar nossos fatos e números e introspecções sensitivas a respeito do
Homem e de como ele reage ao sofrimento e perda com os nossos estudantes e
colegas de outras disciplinas e especialidades porque - ao menos na minha
experiência - eles se importam tanto quanto eu. De fato, a maioria se importa
mais do que eu, é o que eu desconfio.
Tem sido dito que
cuidado paliativo é “mais arte que ciência“. Talvez isso seja uma das coisas que mais tem impedido as
pessoas de se unirem a nós. Em
uma tentativa de opor-se a essa assertiva, há agora um movimento, em particular
no Ocidente, que insiste
em que tudo que dizemos e fazemos tenha que ser baseado em evidências, a
fim de que no devido tempo as pessoas possam descrever o cuidado paliativo como
sendo “mais ciência que arte“. Eu considero ambas as descrições como imprecisas
e perigosas. Certamente existe lugar para equilíbrio, possivelmente uma igualdade.
Tanto arte como
ciência. Tanto ciência como
arte. O cuidado paliativo poderá, no devido tempo, ser visto como a disciplina
que demonstra que tal simbiose é simultaneamente criativa e poderosa.
Eu quero que as pessoas vejam que o que nós fazemos, é muito
mais que o controle da dor e sintomas - por si só de extrema importância. Eu
quero que eles reconheçam, e eu suspeito que todos vocês também o querem, que o
cuidado paliativo se preocupe com três coisas:
A qualidade de vida
O valor da vida
O significado da vida
Não passa um dia sem que falemos de qualidade de vida
(apesar de nós raramente perguntarmos ao paciente o que ele acha sobre isso). O alívio do sofrimento é um ingrediente
chave, mas somente um entre muitos outros ingredientes. Os outros são: honestidade absoluta, dignidade do paciente,
médicos que tenham sido treinados para ouvir e falar só quando necessário, e
ambientes e práticas dirigidas ao paciente e não ao staff. É óbvio, eu
ouço você dizer? Se
for, eu devo ter trabalhado e visitado os lugares errados.
Eu sinto apaixonadamente que nós vivemos numa idade em que a
vida humana e as vidas das pessoas são cada vez mais vistas como não tendo
valor, exceto em termos econômicos. As
pessoas são necessárias e valorizadas somente quando podem produzir e
contribuir para a sociedade. Quando estão desempregadas ou velhas ou doentes e
morrendo, ninguém fala de valor. Elas
são constantemente lembradas pelo quanto custa tratá-las, interná-las,
mantê-las vivos, ou até mesmo oferecer-lhes cuidado paliativo. A mensagem
central de cuidado paliativo é que você tem valor, você é necessário, você é
apreciado, e nós gostamos de cuidar de você porque é você! No dia em que
nós deixarmos de agir assim, nós passaremos a ser apenas técnicos e
sintomatologistas.
Eu não sei qual é o significado da vida! Um dos aspectos do
envelhecimento, deixando de lado os sonhos nostálgicos e de aborrecer os amigos
com estórias, eu não mais tenho certeza de coisa alguma. Eu conheço essa experiência muito bem. Mas isso eu sei!
Quanto mais as pessoas se aproximam do fim da vida, mais elas perguntam porque,
porque, porque? Porque o Homem sofre? Porque ele tem de morrer? Porque os bons
sofrem tanto ou mais que os maus? Porque tantos morrem ainda tão jovens? Qual é
o significado de tudo isso - vida, morte, bem e mal? Porque eu? Eu aprendi quão
frequente nossos doentes fazem essas perguntas. Eu também aprendi que eles não
esperam de nós qualquer resposta. O que eles desejam - e o que você e eu às
vezes podemos oferecer nesse trabalho - é alguém para ouvir e nada dizer. Alguém para compartilhar de sua humanidade. Alguém que saiba que a amizade compartilhada em um dos
momentos mais solitários da vida, é de uma preciosidade além das palavras.
Na ocasião de nossa morte nós já teremos ouvido o suficiente
das pessoas, especialmente dos políticos, os quais pensam saber tudo e ter
todas as respostas. Eu suspeito que a definição de realmente um grande homem, é
aquele que sabe as perguntas a serem feitas, mas que afirma não conhecer as
respostas.
Compartilhar a nossa humanidade é o tema de um pequeno livro
de minhas memórias, que eu espero ver publicado antes do fim do ano - “Bilhete
de Plataforma: Memórias e Recordações de um Médico de Hospice“.
Um serviço de cuidado paliativo, volto a dizer, é sobre
qualidade de vida, valor da vida e significado da vida. Estas três coisas são
direitos humanos básicos. Portanto, deve ser perguntado se você e eu estamos
empenhados para que todos tenham acesso a eles. A resposta é não. Nós apenas começamos a fazê-lo, mas do fundo do meu coração
eu acredito que o International
Hospice Institute and College
(atualmente International Association for Hospice and Palliative Care) é um elemento
chave nesse processo.
Assim como os fundos continuam entrando, e mais e mais
colegas são capacitados para aceitar convites de ensinar e demonstrar em
centros espalhados pelo mundo, também a mensagem de hospice espalhará como um
incêndio florestal. Eu me recordo quando se podia contar nos dedos da mão o
número de hospices no Reino
Unido, onde tudo
começou. Hoje existem mais de 6.100 no mundo. Eu me recordo também dos nossos esforços para estabelecer
educação e treinamento em cuidado paliativo, e hoje nós temos cátedras
professorais no Reino
Unido, Austrália, EUA e
Canadá, e a medicina paliativa reconhecida como uma especialidade em diversos
países. Isso pode ser feito!
Nós precisamos de um número suficiente de pessoas de modos
antiquados para trabalhar sem pensar em recompensas financeiras ou honraria
internacional. Nós precisamos de pessoas dispostas a compartilhar e a
sacrificar-se; pessoas com visão clara, mas desinteressadas em construir um
império. Nós precisamos de
pessoas que compartilhem a nossa visão de cuidado paliativo reinstalado no
centro, bem no coração da medicina e da enfermagem, onde era o seu lugar bem
antes de nós sonharmos de curas.
Eu desconfio que a maioria da população mundial é mais
pé-no-chão e realista que os médicos que cuidam dela. Ela não sonha com o
impossível. Ela não pede mais do
que nós podemos oferecer. Ela
simplesmente nutre a esperança de que nós cuidaremos dela o suficiente para
aliviar o seu sofrimento, e possamos auxiliá-la a saber que a sua vida tem de
fato um significado e um valor, assim como uma qualidade. Eu desconfio que o
sofrimento e a morte são bem aceitos se tiverem significado.
Apenas o sonho de um
homem velho? Eu acho que não. De todo o meu coração, eu espero que não.
Obrigado