POR MÁRIO INGLESI - A ALEGRE SORRATEIRA II - continuação
Hanami - Cerejeiras em Flor - Filme imperdível para a saúde do viver
E mais, também no advento do avançar das pesquisas sobre a vida e a morte como processo, a “criônia” (congelamento), os transplantes de órgãos, a clonagem (por ora, com animais), se um dia estendida aos humanos, quem sabe teremos um “segundo mandato”, os bancos de esperma, de sangue, as pesquisas com células tronco, haverá minimamente o avançar da vida e consequentemente, o aproveitar da “morte”, ainda que lenta, ou a pari passu, para atingir a imortalidade não da própria pessoa, mas, em outra, que essas conquistas possibilitaram constituir.
Com esses dois parâmetros existenciais:
morte e trabalho, pouco nos restou de tempo para usufruir a vida condignamente,
com o lazer, o prazer, e convivência compartilhada de um viver soberano e, não
apenas como um fardo a ser suportado, como uma penalidade por um crime que não
se cometeu, ou como uma fase a ser consumida de modo disparatado, sem eira nem
beira, sem limites de conquistas efêmeras, não usuais e inúteis. Como vem
acontecendo hoje com a preponderância, a todo custo, do ter sobre o ser.
É preciso ter sempre em mente que se a
morte está implícita na vida, esta vida também convive com a morte em todos os
instantes e em todas as suas modalidades.
Nesse entranhar de vida e morte e
vice-versa, a imortalidade almejada pelo ser humano só encontrará guarida e se
desvelará nas artes, nas ciências, na literatura e na poesia.
E quando enfim se apagar
no curso dos fenômenos o pulsar de vida
quando enfim deixar
de existir
este que se chamou Rainer Maria Rilke
desfeito o corpo em que surgira
e que era ele, Rilke,
desfeita a garganta e a mão e a mente
findo aquele que
de modo próprio dizia a vida
resta-nos buscá-lo nos poemas
onde nossa leitura
de algum modo
acenderá outra vez sua voz
Ferreira Gullar, in Rainer Maria Rilke e a
morte, (Folha de S. Paulo – Mais! – 09.09.2001).
E mais, também no advento do avançar das pesquisas sobre a vida e a morte como processo, a “criônia” (congelamento), os transplantes de órgãos, a clonagem (por ora, com animais), se um dia estendida aos humanos, quem sabe teremos um “segundo mandato”, os bancos de esperma, de sangue, as pesquisas com células tronco, haverá minimamente o avançar da vida e consequentemente, o aproveitar da “morte”, ainda que lenta, ou a pari passu, para atingir a imortalidade não da própria pessoa, mas, em outra, que essas conquistas possibilitaram constituir.
Com tudo isso, apesar de a morte estar por
toda parte nos rondando, dia a dia, a toda hora, em todos os lugares, ela vem
perdendo gradativamente sua máscara amedrontadora, seu sentido malígno, sua
tristeza sem fim, bem como quase toda a sua simbologia: seu luto, com roupas e
tarjas escuras, sua escuridão plena e obsedante, suas carpideiras, suas
incelenças, seus ritos fúnebres, suas missas especiais e longas, com seu dobrar
dos sinos, seus réquiens e músicas sacras a alçar, comovidamente, a alma aos
céus, e, até, em larga medida, o sepultamento em favor da cremação, os
epitáfios, os túmulos, as fotografias, as flores, velas e coroas sem fim. Esse seu esvaziamento de simbologia e
formalismo contemporâneo foi, e continua sendo, importante para que nós a
compreendêssemos e sobrevivêssemos a ela, com galhardia, como, aliás, é
demasiado importante para nosso rito de passagem, que é a nossa vida. Lutar
contra a morte é tal qual, lutar contra os moinhos de vento, como fez Dom
Quixote, não leva a nada, O que se manifesta indispensável é lutar, com afinco
e pertinácia, em favor da vida, principalmente, quando há indícios, ainda que
poucos ou pequenos resquícios de oportunidades em preservá-la. Também temê-la,
com tal vigor de perdê-la que leve a um viver rodeado de grades, isolamento
entre quatro paredes, sempre às escondidas, é não lutar pelo viver, e sim, morrer
em vida, inutilmente, sob o peso de:
Meu
Deus! como morre gente no país.
Basta virar as costas, pegar um avião
E as cartas vêm carregadas em quatro
alças,
Escuras, em selos de férreo caixão.
Basta tirar os olhos, despregar a mão da
mão,
e começam a se suicidar, cair de enfarte,
bater nos postes, se afogar no mar
e se entregar ao câncer e à solidão.
Por que será que não morrem tantos
Quando estou perto?
Ou será que morrem lentos, fraternos,
Sem alarde, discretos
em cada conversa à tarde,
no escritório e no portão,
e a gente é que não repara
mas está de pá em punho
ajeitando o corpo alheio
em cada aperto de mão?
(“Notícias de Morte”, de Affonso Romano de
Sant’Anna, in “Cultura”, O Estado de S. Paulo, 19 junho 1983).